OS DOIS LADRÕES, CONTO DE ANTÔNIO TORRES
Postado por DCP em 09/05/2021
[Curadoria de
Natanael Lima Jr]
Antônio
Torres é escritor e membro da ABL
Foto:
Reprodução
OS DOIS LADRÕES*
O primeiro era apenas um Zé, ou Zé
Preto, o Zé do velho Loló, que ele chamava de “Papai Lolô”, embora não fosse
seu filho. Nunca se soube quem foram os seus pais, nem se chegou a conhecê-los.
Corria a lenda de que aquele Zé havia sido encontrado numa porteira, dentro de
um cesto. Outro mistério envolvia o seu achamento: largado nu e solitário, ele
no entanto sorria. Como se fosse a criança mais feliz do mundo.
A bem da verdade, eu ainda não havia nascido quando isso aconteceu, se é que essa história não foi pura imaginação de um povo que vivia inventando histórias para espantar o medo da noite — ou para não perder o juízo. O certo é que, quando me dei por gente, Zé Preto já era um meninão grande, forte e risão. Nós, os garotos menores — meus primos e eu — vivíamos brincando com ele. Aquelas coisas da roça: bater perna pelos pastos, caçar passarinhos, pegar canário, armar arapuca para codorna, pescar no riacho, subir em pé de umbuzeiro, espetar tanajura. E foi assim que o conheci: já o Zé de Papai Lolô e Mamãe Adelaide, que vinham a ser os meus avós paternos. Logo, ele era como se fosse meu tio. Meu tio preto.
E assim ele cresceu: trabalhando a
terra na enxada e no arado, cuidando do gado, fazendo os mandados. Até
tornar-se o carreiro de bois, a transportar sacos de feijão e de milho,
carradas de areia e de madeira (e gente também) pra todo lado. E como aquele
carro de bois cantava nas estradas! A meninada adorava pegar uma carona nele.
Não, Zé Preto não era apenas um agregado do meu avô. Era um amigo.
Um dia fez-se a desgraça. Alguém das
vizinhanças deu falta de uma galinha e cismou que o Zé a havia roubado.
Alvoroço no povoado. Soldados no seu encalço. Zé foi apanhado na roça em que
sempre esteve e levado aos empurrões e pontapés para a delegacia, onde um
sargentão truculento o aguardava com uma palmatória que devia pesar um bom meio
quilo.
— Confessa, negro!
O interrogatório do sargento era feito
ao som das palmadas, que se alternavam de uma mão à outra. E as mãos do Zé iam
engordando, inchando, estourando. E ele, de os olhos esbugalhados, jurava por
tudo quanto era santo que não havia roubado galinha nenhuma. E quanto mais
negava, mais apanhava. Tome soco, chute, bordoada. Quando meu avô chegou para
tentar libertá-lo, encontrou-o desmaiado. Zé morreu um ano depois. Jamais se
soube se das pancadas ou de desgosto. Ou das duas coisas.
***
O outro era ladrão mesmo. Roubava
gado. Chamava-se Dominguinhos, filho do velho Domingos, um fazendeiro
endinheirado. Nunca foi apanhado. Quando as denúncias começaram, ele caiu no
mundo — o maravilhoso mundo da impunidade. E esta é apenas mais uma história de
ladrões cuja moral já se tornou clássica.
*Do Livro “Sobre Pessoas”, Ed.
Leitura, Belo Horizonte, 2007.
Ler Antônio Torres é sempre um prazer imenso! Seus textos são sempre atuais, pois que atemporais. O mundo dá voltas, mas sempre em torno de si mesmo... E nada muda, ou melhor dizendo, o ser humano está cada dia pior - aos ricos a impunidade, aos negros e pobres o castigo massacrante, capaz de destruir suas poucas esperanças de viver com (ou sem) dignidade. Isso me fez pensar em A PROSTITUTA RESPEITOSA, de Sartre... Torres, meus efusivos aplausos! Fraterno abraço.
ResponderExcluirQue bom ler Antônio Torres! Parece que a gente entra na história fica olhando pra cá, olhando pra lá até o final.
ResponderExcluirQue bom ler Antônio Torres! Parece que a gente entra na história fica olhando pra cá, olhando pra lá até o final.
ResponderExcluirLindo.
ResponderExcluirGosto muito do título do Livro, “Sobre Pessoas”
Uma realidade bruta, uma denúncia social - um conto para analisar uma sociedade.
ResponderExcluir