NOEL EM DEZEMBRO*
Postado
por
DCP em 19/12/2021
Por Urariano
Mota¹
Em
todo o mundo, quem abriu o google em 11 de dezembro de 2019, encontrou um desenho que chamam de doodle.
Nele se achava um indivíduo de chapéu e violão em um bar. Com um clique na figura,
abria-se o espaço para Noel Rosa com 64 milhões de resultados. Era uma
homenagem para o dia do seu nascimento, em 11 de dezembro de 1910. Então, como
fugir ao irrecusável convite desse dia?
Por isso a um artigo anterior retorno.
Publiquei
uma vez que maio deveria ser o mês mais triste para os brasileiros. Pois quem
daria mais por um artista feito no rigor da arte, sem introdução e sem segunda
parte, que expressasse três terços de todo brasileiro? Porque eu queria simplesmente dizer: maio
deveria ser o mais triste dos meses, porque nesse mês faleceu Noel Rosa. E
ninguém mais notava. E ninguém dava mais por isso, ninguém dava mais um mil
réis por isso, o que era um cômico que zomba, porque Noel foi e é o maior
compositor da música popular brasileira.
Pela décima vez
Jurei
não mais amar
Pela
décima vez
Jurei
não perdoar
O
que ela me fez
O
costume é a força
Que
fala mais alto
Do
que a natureza
E
nos faz dar prova de fraqueza.....
Ou
porque
Gago apaixonado
Mu-mu-mu
mulher
Em
mim fi...fizeste um estrago
Eu
de nervoso
Estou
fi-fi... ficando gago...
Se
ainda não consegui me fazer entender, procurarei ser mais claro: Noel é um
compositor tão rico quanto a vida, e quanto mais a gente procura apanhá-lo,
pegá-lo, nem que seja para um riscado de caricatura, mais ele nos foge,
escapole, por entre os dedos. Ele fica a sorrir de nossa vã pretensão. Por onde
tentemos pegar Noel, ele se furta à nossa frente. Vejam por quê. Se tentamos
agarrá-lo pelos dados biográficos, a nossa tendência é situá-lo como o personagem
ideal de um dramalhão de circo.
Ao
nascer, foi arrancado a fórceps, o que lhe afundou o maxilar inferior e lhe
deixou paralisado o lado direito do rosto. Esse foi um defeito que se tornou
pior ao longo dos anos, porque se agravou depois de duas cirurgias. Na escola,
a crueldade das outras crianças o apelidou de “Queixinho”. Isso ocorreu até o
dia em que descobriu o bandolim: “A menina do lado cravava em mim uns olhos
rasgados de assombro. Então eu me sentia completamente importante. Ao bandolim
confiava, sem reservas, os meus desencantos e sonhos de garoto que começava a
espiar a vida”. Naturalmente, o escudo do bandolim, e do violão depois, era
pouco. Quando o queriam elevar, além do plano puramente físico, diziam que
apesar de feio, baixinho e magro, a sua inteligência e sambas conquistavam
mulheres. Se alguma vez ouviu semelhante elevação, Noel deve ter sorrido com
amargura. Porque
Dama
do cabaré
Foi num cabaré da Lapa, que eu conheci
você
Fumando cigarro, entornando champanha
no seu soirée
Dançamos um samba, trocamos um tango
por uma palestra
Só saímos de lá meia hora depois de
descer a orquestra.
Em frente à porta um bom carro nos
esperava
Mas você se despediu e foi pra casa a
pé
No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da dama do cabaré
Eu não sei bem se chorei no momento em
que lia
A carta que recebi, não me lembro de
quem
Você nela me dizia que quem é da
boemia
Usa
e abusa de diplomacia, mas não gosta de ninguém.
Pois
sim. Em outra elevação se diz que Noel transformava a sua vida em samba. Coisa
que consola. Nós, como todo filisteu, como todo bom pequeno-burguês, adoramos
um artista sofrido, machucado, que cante para nós a sua dor. (Em sua biografia,
há uma foto de mulher, há uma foto de uma feiticeira, há uma foto da Dama do
Cabaré que deve ter tantalizado Noel. Imaginamos o que ela escreveu no verso da
própria imagem, se alguma vez deixou para Noel alguma foto: “Como prova de
amizade, Ceci”. De amizade... Amizade para quem ama ) Então se diz que ele
transformava a vida em samba, mas se esquece que nos intervalos da arte Noel
evitava comer, simples comer à mesa, na frente dos admiradores. O queixo
danificado mortificava-o, o seu mastigar era um espetáculo de animal de zoo. E
por isso nas noites em claro, de brutas farras, alimentava-se apenas de caldos,
de comidas leves, e comia mais cigarros, muitos e muitos cigarros, que deviam
torná-lo um homem, acreditava-se então, de aparência bonita. Ele, que já havia
sido chamado, num duelo de sambas, de O Frankestein da Vila. Mas com um cigarro
permanentemente nos lábios até um monstro se recompunha, naqueles idos mal
vividos. Acreditava-se. Não riam, porque dessa dieta alimentar, estilo de vida
e hábito sobrevieram ao nobre artista: febre, hemoptise, pulmões podres. Um
gênio arrebentado em plena criação e juventude. Que se foi, aos 26 anos, em 4
de maio de 1937.
Meio
trágico, não? Pois sim, esse mesmo Noel que foi chamado de Frankestein pelo
sambista Wilson Batista num momento de raiva (e como são sinceros esses
momentos de raiva!), esse mesmo Noel tuberculoso, raquítico, é o homem que diz
em uma entrevista à revista O Cruzeiro, ao lhe ser perguntado que relação
existiria entre o amor e a música:
“Romeu
e Julieta morreram ignorando essa relação. Acho, porém, que a relação seja a
mesma que existe entre a casca de banana e o tombo, num escorregão”.
É
esse homem que tosse e escarra sangue o mesmo humorista que numa madrugada, ao
nascer o dia, é reconhecido por amigos músicos que voltavam de automóvel, de
uma festa. Conta-se que seu perfil, em um poste à espera do bonde, se destacava
pela negação: terno branco à procura de um corpo, rosto que descia à procura de
um queixo. Então os amigos param o carro e mandam-no embarcar. Ele entra e vai
pedindo:
- Me sirvam um conhaque.
- Por que isso, Noel?
- Por quê?! Eu estava esperando um
bar, quando vocês passaram.
Ele
é o mesmo homem que à sua magreza de doente assim se referiu:
Tarzan, o filho do alfaiate
Quem
foi que disse que eu era forte?
Nunca
pratiquei esporte
Nem
conheço futebol
O
meu parceiro sempre foi o travesseiro
E
eu passo o ano inteiro
Sem
ver um raio de sol
A
minha força bruta reside
Em
um clássico cabide
Já
cansado de sofrer
Minha
armadura é de casimira dura
Que
me dá musculatura
Mas
que pesa e faz doer
Eu
poso pros fotógrafos
E
distribuo autógrafos
A
todas as pequenas lá da praia de manhã
Um
argentino disse
Me
vendo em Copacabana
No
hay fuerza sobre-humana
Que
detenga este Tarzan!
De
lutas não entendo abacate
Pois
o meu grande alfaiate
Não
faz roupa pra brigar
Sou
incapaz de machucar uma formiga
Não
há homem que consiga
Nos
meus músculos pegar
Cheguei
até a ser contratado
Pra
subir em um tablado
Pra
vencer um campeão
Mas
a empresa pra evitar assassinato
Rasgou
logo o meu contrato
Quando
me viu sem roupão.
No
entanto, se tentamos apanhar Noel a partir da maioria de suas letras, que
diríamos, sem erro, quase sublimes, no limite da oração, da queixa de um homem
a Deus,
Último desejo
Nosso
amor que eu não esqueço
E
que teve o seu começo
Numa
festa de São João
Morre
hoje sem foguete
Sem
retrato e sem bilhete
Sem
luar, sem violão
Perto
de você me calo
Tudo
penso e nada falo
Tenho
medo de chorar
Nunca
mais quero o seu beijo
Mas
meu último desejo
Você
não pode negar
Se
alguma pessoa amiga
Pedir
que você lhe diga
Se
você me quer ou não,
Diga
que você me adora
Que
você lamenta e chora
A
nossa separação.
Às
pessoas que eu detesto
Diga
sempre que eu não presto
Que
meu lar é o botequim
Que
eu arruinei sua vida
Que
eu não mereço a comida
Que
você pagou pra mim
Diante
de uma letra assim, diante de uma melodia que não podemos expressar em palavras
de prosa, diante da expressão de tal sentimento, sempre novo, tão vivo e
primordial que nos faz penetrar um cheiro de sal e mar pelo nariz, diríamos,
que dor, que felicidade trágica na expressão! A impressão que Noel nos deixa,
em seus versos mais cruéis, é que ele compõe epitáfios. Mas ele não compõe como
um indivíduo póstumo. Devíamos dizer com mais precisão que ele pinta e canta
enternecedores testamentos. O dicionário dirá que testamento é um “ato
personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual alguém, com
observância da lei, dispõe de seu patrimônio, total ou parcialmente, para
depois de sua morte”. Ora, unilaterais, solenes e limitados por vezes são os
dicionários! Último Desejo é uma expressão de última vontade bem ambígua. Para
as pessoas amigas, a mulher deverá dizer que o adora, e lamenta e chora a
separação. Mas para os inimigos ela deverá dizer que o seu lar foi um botequim,
que ele arruinou a sua vida, e que é indigno do pão que ela pagou para ele. E
cabem aqui duas observações. A primeira delas é que na canção o patrimônio do
poeta se faz em torno de coisas, como diríamos, intangíveis: bares que jamais
possuiu, álcool bebido e sumido, amor que se foi, se alguma vez houve. Visto de
um modo mais geral, as letras de Noel sempre exibem uma miséria material que
não atinge o seu espírito. A miséria de bens tangíveis, materiais, não atinge a
miséria humana. A outra observação fala da ambiguidade dos seus rompimentos amorosos.
Ações típicas de quem rompe pelo afastamento físico, mas não rompe no
sentimento:
Jurei
não mais amar
Pela
décima vez
Jurei
não perdoar
O
que ela me fez...
E
nesta altura acrescentamos, ou melhor, o gênio de Noel acrescenta um precioso
dado: em uma linha de um verso ele exprime uma vivência, uma observação fina.
Por exemplo, quando ele compõe em Dama do Cabaré o verso “Você nela me dizia
que quem é da boemia”, ele nos diz, para todos que já passamos noites e mais
noites a beber: a gente dessas noitadas, pelo estilo de vida ou por vício, é
leviana, dispersa, mentirosa, tão egoísta por fim quanto animais mimados, e por
isto, “não gosta de ninguém”. Ele é capaz de em linhas de versos impor uma
reflexão que causa espanto aos preconceitos que acham alturas somente na
tradição acadêmica, nas glórias institucionalizadas. Em dúvida?
“O
costume é a força
Que
fala mais alto
Do
que a natureza”
Ou
“Quem
acha vive se perdendo” ou
“Não
posso mudar minha massa de sangue”, para dizer que é suburbano, do lado
marginalizado, por vocação, gosto, alma e destino.
Não
tenho exata certeza se a partir de Noel, mas com certeza ele é um dos
responsáveis pelo destaque, pela individualização da letra na canção do Brasil.
Com ele ganha corpo autônomo uma letra que só existia tão só e somente na
música. Aquele fenômeno destacado por Hesse num conto, quando observa: “Era
surpreendente constatar como um verso cantado soava completamente distinto do
lido ou recitado. Na leitura, um verso era um todo, tinha um sentido, constava
de frases. No canto constava só de palavras, não havia frases, não havia
sentido; mas em troca as palavras soltas cantadas, arrastadas, adquiriam uma
estranha vida independente, às vezes eram até sílabas, em si totalmente
carentes de sentido, que se tornavam independentes no canto e ganhavam uma
imagem”. Se isso é verdade na canção em geral, e mais particularmente no canto
religioso, em Noel ganha outro sentido. A sua letra é capaz de nos elevar a um
sentimento de beleza, mesmo que não conheçamos a sua melodia. Os estrangeiros,
os não-brasileiros, que não têm a felicidade de conhecer a música de Noel,
poderão com mais justiça dizer se há razão no que digo. Leiam isto:
Três apitos
Quando
o apito
Da
fábrica de tecidos
Vem
ferir os meus ouvidos
Eu
me lembro de você.
Mas
você anda
Sem
dúvida bem zangada
Ou
está interessada
Em
fingir que não me vê
Você
que atende ao apito
De
uma chaminé de barro
Por
que não atende ao grito tão aflito
Da
buzina do meu carro?
Você
no inverno
Sem
meias vai pro trabalho
Não
faz fé com agasalho
Nem
no frio você crê
Mas
você é mesmo
Artigo
que não se imita
Quando
a fábrica apita
Faz
reclame de você
Nos
meus olhos você lê
Como
sofro cruelmente
Com
ciúmes do gerente impertinente
Que
dá ordens a você
Sou
do sereno
Poeta
muito soturno
Vou
virar guarda-noturno
E
você sabe por quê.
Mas
você não sabe
Que
enquanto você faz pano
Faço
junto do piano
Estes
versos pra você.
Será
que foi possível sentir, somente com a letra, somente no silêncio, o perfume
dessa delicada flor? No romance Os Corações Futuristas essa composição fala:
“Cai um silêncio, a agulha fica raspando. Até o ponto em que Canhoto se levanta
e põe Três Apitos, de Noel. Isso dói no peito e faz aumentar a sede. O uísque
jorra, parece. Os copos com gelo ficam a meio, com aquele uísque safado,
estragado, distribuído com uma fraternidade que a comunhão da santa hóstia da
santa missa jamais conseguiu. Bebem, calados, amando a vida amarga e ruim. ‘Com
ciúmes do gerente impertinente que dá ordens a você’ ...”.
O
X do problema em Noel é que ele é um compositor popular com um pensamento, uma
reflexão, que passa por cima de toda folclorização, de todo exotismo. Ele
responde insofismável à superioridade com que a gente culta, educada, trata os
estranhos a seu meio. E não se diga por favor que Noel é um homem educado
porque estudou Medicina, como se esse curso desse educação estética e humana a
alguém. Não se fale tal bobagem, ainda que se aceite essa ilusão, porque Noel
apenas começou Medicina, uma quase humanidade de anatomia. Nem se diga que ele
viveu e transitou em meios mais sofisticados: se por esses ambientes passou,
ele gostava mais e era querido nos ambientes marginalizados, dos malandros, e
da negrada. (Há um depoimento de Dona Zica, de Cartola, sobre isso, da sua
amizade e porres com Cartola, acordando no morro.) Talvez com mais propriedade
se diga que tendo todos os motivos para escrever os versos mais tristes, e
tão-somente estes, ele não só os escreveu, como da tristeza e desgraça zombou.
Ele, à sua maneira, bem fez o que recomendava Sartre: “Na vida importa mais o
que fazemos do que nos fazem”.
Com Noel, o X do
problema, que se não o resolve, pelo menos o escreve, é que ele é um artista de
excepcional talento, diria, até, e nos perdoem o capricho livresco: Noel é um artista
total, aquele artista que todos sonhamos, ou deliramos em noites de febre e
loucura, algum dia numa felicidade ou maldição ser. Ele é trágico, satírico,
lírico, humano, cômico, alto, verdadeiro.
No dia 5 de maio de
1937, um jornal do Rio pôs em manchete: “A morte prematura de Noel Rosa”. Hoje
percebemos melhor que o mais prematuro da morte, aos 26 anos de idade, foi a
sua vida entre os brasileiros. Pior: o Brasil, nesta descida de ladeira que se
aprofunda, não sabe o que fazer diante da
humanidade de Noel. O seu patrimônio imaterial, que não havia sido
sequer assimilado, recebe um perseguidor da cultura na presidência da
república. Menos mal que depois de 109
anos ele receba homenagem do google. O que não deixa de ter lá sua ironia. Tudo
que é virtual é de Noel Rosa.
*Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/325215-1
...
¹Urariano Mota é escritor e jornalista recifense
Que maravilha de texto, querido Urariano! Eu poderia ficar aqui falando de Noel Rosa e de tua brilhante visão e análise da vida e obra de um ser especial demais como Noel, mas nada mais cabe aqui. Você disse tudo com maestria, dosando emoção e razão como poucos fazem. Só posso te aplaudir e agradecer pela partilha deste primoroso texto! Fraterno abraço 🙏🏻
ResponderExcluirMárcia Sanchez Luz, o teu comentário honra qualquer escritor. Eu que mais te agradeço. Abração fraterno!
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