CONVERSA DE SOLIDÃO NA NOITE SANTA: (CONTO) DE JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA

 

Postado por DCP em 19/12/2021


Por José Rodrigues de Paiva¹





José Rodrigues de Paiva nasceu em Coimbra, Portugal
Foto: Reprodução












Pois é, amigo, é verdade, o tempo passa, e nós, inevitavelmente, envelhecemos. A vida é um sopro. Tão breve como uma luz que se acende e se apaga em seguida. Os anos, parece, cada vez passam mais depressa. Ainda ontem acabou um e já estamos outra vez no Natal. Até dá a impressão que os relógios agora são mais rápidos, ou os dias menores.  Entre o nosso nascer e a nossa morte, nesse curto trajeto, nessa fração de tempo, quantas transformações no mundo e em nós próprios, quanto acontecer vertiginoso. Imagine, por exemplo, que você, pela idade que tem, deve ter visto os primeiros aviões, e hoje, poucas dezenas de anos passadas, o homem já está indo à Lua em sofisticadas aeronaves, como nos filmes de ficção científica. Com que rapidez, meu Deus, se passa por esta vida... É realmente o século da velocidade. Vive-se depressa e morre-se depressa, e durante toda a vida não deixamos nunca de olhar para o relógio, angustiados pela escassez de tempo, como se competíssemos com ele numa corrida absurda. Olhe-se ao espelho e veja depois um retrato seu da juventude. Quanta mudança, não? E, no entanto, procure na memória e vai ver que a sua juventude não lhe parece estar tão longe.

 

Sim, meu amigo, a vida é curta. Apenas um rápido suceder de fatos. Tome por exemplo o Natal. Veja o tempo litúrgico: daqui a pouco o Menino-Deus nascerá. Mais alguns dias, já estará no templo, entre os doutores, espantando a todos com a sua sabedoria. Mais um pouco e andará por Nazaré, Jerusalém, Cafarnaum, pregando as glórias do reino de seu Pai, transformando água em vinho, curando doentes, dominando tempestades, multiplicando pães e peixes, e em menos de um ano terá morrido e ressuscitado, para outra vez vir ao mundo numa noite como a de hoje. Assim também é a nossa vida: uma nuvem que passa, levando-nos nesta subida para o alto do monte de onde daremos o salto final.

 

E nós envelhecemos sem sentir, porque o tempo, sutil e traiçoeiro, nada perdoa nem poupa. Os anos passam, mas deixam sobre nós a sua marca. Lembro-me de uma vaga madrinha, já velhinha, que costumava dizer num meio sorriso, entre alegre e triste, que a juventude devia ser como a primavera, que volta todos os anos... Quanta sabedoria e beleza nestas palavras de uma mulher tão simples. No crepúsculo da vida, sentia que a juventude lhe fugira com os anos que nunca mais voltariam, e, certamente, devia lamentar essa perda irreparável.

 

Não gosto destas festas de fim de ano, sabe? ... Nunca gostei, porque nunca me senti realmente alegre nesta época. Pelo contrário, estas músicas, estes risos, este movimento desusado nas ruas, no comércio, este espírito de fraternidade pré-fabricado nas engrenagens de um complexo industrial invisível, deixam-me melancolicamente aborrecido.

 

Cada fim de ano como que nos obriga a fazer uma revisão, uma espécie de balanço em nossa vida, e quase sempre tudo nos parece tão pouco, tão inútil, tão vazio, que nos perguntamos intimamente: afinal, meu Deus, o que fiz eu? E como tudo neste tempo me parece igualmente tão perto e tão distante! Admira-se? Pois é verdade. Nesta época parece que minha memória se aguça. Sou capaz de reconstituir coisas da infância, tão insignificantes que, acredito, qualquer pessoa jamais relembraria.

 

Não sei porquê ficaram-me essas coisas na cabeça, e de tal modo me são nítidas, que às vezes chegam a desfazer a exata noção do tempo que me separa delas.

 

Das noites de Natal, por exemplo, lembro-me, na mais remota infância, de alguns pequenos presentes que me eram deixados durante a noite, por um certo velhinho que nunca consegui ver. Num desses anos, além do presente, deixou-me também uma carta, parabenizando-me pelos bons serviços prestados na escola, e dizendo que se eu continuasse assim, viria mais uma vez no ano seguinte. Depois descobri (acho mesmo que sempre desconfiei disso) que o tal velhinho era outro e não o que pintavam, mas, talvez para não quebrar a graça, continuei fingindo de nada saber, durante mais dois ou três anos, até onde a idade me permitiu e a infância se prolongou. Mais tarde, quando o tempo passou, também me transformei no tal velhinho, e assim, a vida continuou seu ciclo natural, até que, da mesma maneira que ocorrera comigo, acabou esse jogo de todos os anos.

 

Agora todos se foram. Estou sozinho. A vida é um círculo, e acho que já tornei ao ponto de partida. A mulher se foi, você sabe, os filhos, todos casados, também se foram, cada um no seu destino. Eu sigo a rota do tempo até encontrar um porto.

 

Não bebe mais nada? Olhe lá fora, há muita gente na rua. É assim todos os anos. Nesta noite pouco se dorme. Mas o verdadeiro sentido destas festas está distorcido há muito tempo, e a cada ano, repete-se apenas o pretexto para se comer e beber “festejando o Natal”. O seu significado, o seu espírito, é lembrado somente nos anúncios da televisão, com sinos badalando, guizos de trenós e tudo mais. Por falar em sinos, eles estão tocando na Igreja de São José. Ouve-os? Tocam alto, cheios de esperança, como nos outros anos. Agora estouram foguetes. É meia-noite. Jesus nasceu outra vez, graças a Deus. Mas o sono já não me larga e o melhor é irmos dormir, porque na nossa idade, já não podemos passar noites em claro.

 

 

Recife, 25 de novembro de 1974

 

 

*Conto extraído do livro “Como as nuvens que passam”, Recife, Edições Dédalo, 2018




...

¹José Rodrigues de Paiva nasceu em Coimbra, Portugal , 30 de outubro de 1945. É poeta, ensaísta e com incursões feitas no domínio do conto. De 1978 a 2015, lecionou Literatura Portuguesa no Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco, onde dirigiu a Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano.  












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Um comentário

  1. E o poeta se morfoseia em prosador, e as palavras, vivas, fortes, reflexivas, seguem seu curso infinito de vida em arte! parabéns Mestre!

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