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DOIS CONTOS DE FERNANDO FARIAS

 

Postado por DCP em 23/05/2021

[Curadoria de Natanael Lima Jr.]







Fernando Farias I Foto: Reprodução 






O site DCP traz toda a irreverência e brilhantismo desse notável contista pernambucano, que teve a sua trajetória literária prematuramente interrompida, aos 59 anos de idade, em 16 de agosto de 2017.



Fernando Farias foi radialista de profissão, escritor contista e produtor cultural. Natural de Caruaru e radicado no Recife. Realizou inúmeras palestras e oficinas literárias em escolas do estado. Foi aluno da Oficina Literária de Raimundo Carrero e de Marcelino Freire, tendo publicado, em 2005, o seu primeiro livro de contos A Morte Trágica da Patinha; Depois lançou a coleção de cinco livros de contos, em formato bolso, Chamado de O livro das cores, composto por Entre sete estrelas – O livro azul; Fantasia manchada de batom carmim – O livro verde; A escolha dos anjos – O livro laranja; Espelhos obscenos – O livro vermelho e Salada mística – O livro amarelo. Em 2015 lança o livro de contos, O ovo cósmico, Recife: Ed. do Autor. No ano seguinte realiza os lançamentos de Escrever ficção não é bicho-papão e A escrita criativa para jovens




JOVELINA NO PLANETA DOS MACACOS*

 

 

 

- Zezinho, aqui é Esmeralda, avisa pra mãe que já terminou meu plantão. Já estou no ônibus. Diz a ela que eu vou à casa da Cartomante. Pede para ela ver se a Dona Jovelina está bem. Morreu uma velhinha aqui no hospital. Parece que se chamava Jovelina. Mais tarde telefono novamente pra ver se tudo está bem.

 

Azia no estômago só se cura com chá da folha do boldo com erva-doce, Jovelina recusou até o antiácido, diz que remédios de farmácia são caros e venenosos. Não acredita que o homem pisou na lua. Jane não insistiu, não adianta mesmo tentar convencer uma velhinha de setenta anos, morando sozinha num barraco de tábuas, na favela Planeta dos Macacos, a mudar suas crenças.

 

Naquela manhã, Dona Jovelina saiu de casa decidida a viajar, iria visitar uma irmã que mora num sítio lá pros lados de Caruaru, e nem passou pela cabeça da manicure Jane impedir a viagem longa e cansativa. A velhinha já estava pronta. Vestido azul estampado de rosas. Cabelos negros e longos, uma negra dos olhos azuis, baixinha e encurvada, alpercatas nos pés e a firme decisão de viajar e não ser contrariada. Jane se despediu com um sorriso de quem se submete aos desejos dos mais velhos e dos loucos, voltou a atender as unhas das clientes fofoqueiras.

 

No outro lado da cidade, acostumada com o cheiro de sangue, os gritos de dor e choros, Esmeralda terminou a faxina noturna do Hospital da Restauração. Cinco anos e já estava endurecida, a fria indiferença que acomete estes profissionais. Mesmo passando a noite limpando a sujeira dos esmagados nos trilhos de um trem, estava feliz, era o fim do plantão, comeu um sanduíche de pernil, tirou a bata branca avermelhada e apressou-se para encontrar o novo namorado, aquele enfermeiro alto, evangélico e safado, contador de piadas, temente a Deus e bom de cama.

 

Esmeralda mais uma vez mentiria, ou como dizem os advogados, faltaria a verdade à mãe, uma manicure da favela Planeta dos Macacos, a vidente que deita cartas, e que só chegaria à noite.

 

Só quando chegou ao ônibus o enfermeiro explicou aquela confusão. Pareciam urubus rasgando um cadáver. Briga de agentes funerários. Todos os dias brigam no necrotério. Pelos defuntos de família rica. Mas hoje foi briga sem sentido. Uma velha indigente, sem parentes e dinheiro. Antes de morrer, ela disse apenas que se chamava Jovelina. Corpo sem valor. Até a polícia foi chamada para acalmar a luta pela indigente.

 

Ao ouvir aquele nome ela se lembrou de telefonar para a mãe.

 

- Zezinho, aqui é a Esmeralda, avisa pra mãe que já terminou meu plantão. Já estou no ônibus. Diz a ela que eu vou à casa da Cartomante. Pede para ela ver se a Dona Jovelina está bem. Morreu uma velhinha aqui no hospital. Parece que se chamava Jovelina. Mais tarde telefono novamente pra ver se tudo está bem.

 

Zezinho, menino prestativo, moleque de recados, camisa do Flamengo, atendeu ao telefone comunitário, recebeu o recado de Esmeralda e foi contar para a manicure Jane, que contou para as clientes sobre aquela velhinha que logo cedo viajou sentindo uma dor no estômago, parecia que tinha morrido.

 

Mais tarde, a Esmeralda viu na TV a Dona Jovelina em prantos, entrevistada no programa sensacionalista, que transforma a miséria em show de humor. O repórter achou engraçada a imagem da velha diante do terreno vazio, foi tudo espetacularmente saqueado, as tábuas das paredes, as telhas, o álbum de fotografias, o fogão e até a imagem do Padre Cícero.

 

Chorou ter perdido tudo. Estava viajando. Pobreza gosta de boatos. Culpou o governo, conformou-se, foi Deus quem quis assim, pediu ajuda às autoridades e lamentou se chamar Jovelina.

 

*Entre sete estrelas – O livro azul.




VIVENDO ENTRE TUBARÕES*

 

 

 

Querida filha,

 

No mundo em que os peixes grandes comem os peixes pequenos e que se vive entre tubarões, todo cuidado é pouco para não se tornar um pescado.

 

Talvez ser adaptável e mutante ao ambiente como um peixe-camaleão, se é que existe, seja a melhor forma de sobreviver.

 

É salutar ter o tamanho das baleias, os dentes afiados das piranhas e a sutileza dos golfinhos.

 

Saber nadar é estabelecer os ritmos de acordo com a velocidade dos cardumes e ter cuidado para não se aproximar muito das hélices.

 

Fazer-se humilde e bela, como aqueles peixinhos japoneses de aquário, até o momento de se tornar verdadeira e ser o tubarão que há dentro de todos nós.

 

*O ovo cósmico, Recife, 2015.










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