ANTÓNIO RAMOS ROSA: A PALAVRA COMO RAZÃO DE VIVER
Postado por DCP
em 30/05/2021
Por Maria de Lourdes Hortas*
https://www.facebook.com/mariadelourdes.hortas.9
António Ramos Rosa I Foto: Reprodução
António Ramos Rosa, uma das mais expressivas figuras da literatura contemporânea portuguesa,
nasceu em Faro (Algarve, Portugal) a 17 de outubro de 1924 e faleceu em Lisboa
a 23 de setembro de 2013. Foi professor de português, francês e inglês, mas, à
medida que se foi dedicando à literatura, abandonou o magistério, mergulhando
integralmente na escrita, única ocupação que dava sentido à sua vida: “A
construção do poema é a construção do mundo.”
Perfeccionista,
embora tenha começado a escrever desde a juventude, publicou O Grito Claro (1958)
seu primeiro livro, aos 34 anos. A partir daí, seguiram-se dezenas de outros,
chegando a publicar cerca de uma centena de títulos, entre os quais Voz
Inicial, Estou vivo e escrevo sol, Não Posso Adiar o Coração, Figurações, O
Deus Nu e Numa folha leve e livre (2013, livro final).
Além de
poesia, Ramos Rosa escreveu ensaios importantes, como por exemplo, Poesia
liberdade livre (1962) e Poesia Moderna e a Interrogação do Real (1979),
dedicando-se também à tradução de ficcionistas europeus e ao desenho.
Em Lisboa,
participou de um grupo de escritores e com eles fundou a revista Árvore, que
publicou os mais importantes nomes literários da época.
Na época em
que viveu, teria sido quase impossível a qualquer grande intelectual português
ficar à margem do que acontecia, politicamente, em seu país. Ramos Rosa foi
militante anti-salazarista, participou do MUD (Movimento de União Democrática)
e foi preso político.
Recebeu
vários prêmios, inclusive o prêmio Fernando Pessoa, em 1988.
Em sua
poesia, António Ramos Rosa procurava, com obstinação, a essência anterior à
linguagem. Segundo o grande crítico português Eduardo Lourenço a obsessão de
Ramos Rosa foi sempre a palavra: “A palavra sobre o mundo, a palavra sobre a
palavra, onde o mundo se diz e se perde.”
António Ramos Rosa I Foto: Miguel Costa
A construção do corpo*
Sempre a tentativa nunca vã...
O equilíbrio musical dos instrumentos,
a paciência do teu pulso suave e certo,
o teu rosto mais largo e a calma força
que sobe e que modelas palmo a palmo,
rio que ascende como um tronco em plena sala.
A tua casa habita entre o silêncio e o dia,
Entre a calma e a luz o movimento é livre.
Acordar a leve chama veia a veia,
erguê-la do fundo e solta propagá-la
aos membros e ao ventre, até ao peito e às mãos
e que a cabeça ascenda, cordial corola plena.
Todo o corpo é uma onda, uma coluna flexível.
Respiras lentamente. A terra inteira é viva.
E sentes o teu sangue harmonioso e livre
correr ligado à água, ao ar, ao fogo lúcido.
No interior centro cálido abre-se a flor de luz,
rigor suave e óleo, música de músculos, roda
lenta girando das ancas ao busto ondeado
e cada vez mais ampla a onda livre ondula
a todo o corpo uno, num respirar de vela.
Sobre a toalha de água, à luz de um sol real,
dança e respira, respira e dança a vida,
o seu corpo é um barco que o próprio mar modela.
*em “A construção do
corpo”, 1969.
A delicada majestade*
Um dia poderás chegar, tu que nunca chegas
porque não és um tu
ou porque chegas sempre em não chegares.
Subi um dia por uma escada silenciosa
e em torno era um pomar branco, tranquila maravilha
e eu senti, eu vi, adivinhei
a divindade amada, a soberana e delicada
majestade. Que suavidade de oriente,
que suave esplendor! Era o fulgor de um sono
límpido, entre olhos verdes, entre mãos verdes.
E num repouso de oiro adormecido era quase um rosto
Antiquíssimo e inicial. Contemplava
a quietude de um imenso nenúfar
e a fragância era quase visível como um mar
entreaberto.
Era um rio detido ou uma tersa nuca ou um braço
estendido
que descansa entre ribeiros primaveris
ou era antes a serena felicidade
e era uma boca da terra que não cantava que não
dizia
o silêncio ardente que no peito de espuma
cintilava.
*em "Acordes,
1990.
A festa do silêncio*
Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se de ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.
Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.
Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
*em “Volante Verde”,
1986.
A noite chega com todos os rebanhos*
Uma cidade amadurece nas vertentes do crepúsculo.
Há um íman que nos atrai para o interior da
montanha.
Os navios deslizam nos estuários do vento.
Alguma coisa ascende de uma região negra.
Alguém escreve sobre os espelhos da sombra.
A passageira da noite vacila como um ser
silencioso.
O último pássaro calou-se. As estrelas
acenderam-se.
As ondas adormeceram com as cores e as imagens.
As portas subterrâneas têm perfumes silvestres.
Que sedosa e fluida é a água desta noite!
Dir-se-ia que as pedras entendem os meus passos
Alguém me habita como uma árvore e um planeta.
Estou perto e estou longe no coração do mundo.
*de A Rosa Esquerda
(1991)
Não posso adiar...*
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as coisas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração
*de O Grito Claro
*Maria de Lourdes Hortas é poeta,
ensaísta e ficcionista
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