CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: “SENTIMENTO DO MUNDO”
Por Natanael Lima Jr.*
Os poemas aqui escolhidos
foram extraídos de o ‘Sentimento do
Mundo’, o terceiro livro do poeta Carlos
Drummond de Andrade, publicado em 1940. Os principais elementos marcantes
nesta obra são o olhar crítico sobre a realidade social da época e um tom
marcadamente político: “Tenho apenas duas
mãos/e o sentimento do mundo”. Drummond traduz o desespero e a dor de um mundo em conflito.
“Esse Drummond
humanista lamenta que as pessoas mantenham olhos cerrados para o mundo a ponto
de permitir a violência – a Segunda Guerra Mundial – e de trocar a compaixão
pelo egoísmo de quem vive em um ‘terraço mediocremente’ confortável (“Privilégio do mar”)”.
Outro aspecto marcante
nesta obra é o seu traço lírico, genialmente trabalhado em forma e conteúdo nos
delicados poemas: “Menino chorando na
noite” e “Noturno à janela do
apartamento”, além do poema dedicado ao amigo e poeta Manuel Bandeira em “Ode no cinquentenário do poeta brasileiro”,
uma magnífica reflexão sobre o fazer poético.
Uma obra indispensável que mantém o vigor
inalterado mesmo após mais de oitenta anos de seu lançamento.
*Natanael Lima Jr. é capricorniano, poeta, editor do DCP e da
Imagética Edições.
SENTIMENTO
DO MUNDO
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
CONGRESSO
INTERNACIONAL DO MEDO
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso
companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das
igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos
democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da
morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e
medrosas.
OS
MORTOS DE SOBRECASACA
MENINO CHORANDO NA
NOITE
Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um
menino chora.
O choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça
perdem-se na sombra dos passos abafados, das vozes
extenuadas.
E no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio
caindo na colher.
Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da
rua,
longe um menino chora, em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.
E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra
sustenta a cabeça
e vejo o fio oleoso que escorre do queixo do
menino,
escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio
apenas).
E não há ninguém mais no mundo a não ser esse
menino chorando.
NOTURNO À JANELA DO APARTAMENTO
Silencioso cubo de treva:
ODE NO CINQUENTENÁRIO DO POETA BRASILEIRO
(Fragmentos)
Esse incessante morrer
que nos teus versos encontro
é tua vida, poeta,
e por ele te comunicas
com o mundo em que te esvais.
Debruço-me em teus poemas
e neles percebo as ilhas
em que nem tu nem nós habitamos
(ou jamais habitaremos!)
e nessas ilhas me banho
num sol que não é dos trópicos,
numa água que não é das fontes
mas que ambos refletem a imagem
de um mundo
amoroso e patético.
Tua violenta ternura,
tua infinita polícia,
tua trágica existência
no entanto sem nenhum sulco
exterior – salvo tuas rugas,
tua gravidade simples,
a acidez e o carinho simples
que desbordam em teus retratos,
que capturo em teus poemas,
são razões por que te amamos
e por que nos fazes sofrer…
Certamente não sabias
que nos fazes sofrer.
(...)
Por isso sofremos: pela mensagem que
nos confias
entre ônibus, abafada pelo pregão dos
jornais e mil queixas operárias;
essa insistente mas discreta mensagem
que, aos cinquenta anos, poeta, nos
trazes;
e essa fidelidade a ti mesmo com que
nos apareces
sem uma queixa, no rosto entretanto
experiente,
mão firme estendida para o aperto
fraterno
- o poeta acima da guerra e do ódio
entre os homens -,
o poeta ainda capaz de amar
Esmeraldas embora a alma anoiteça,
o poeta melhor que nós todos, o poeta
mais forte
- mas haverá lugar para a poesia?
(...)
Que o poeta nos encaminhe e nos
proteja
e que o seu canto confidencial
ressoe para consolo de muitos e esperança de todos,
os delicados e os oprimidos, acima
das profissões e dos vãos disfarces do homem.
Que o poeta Manuel Bandeira escute
este apelo de um homem humilde.
PARABÉNS PELA BELA POSTAGEM SOBRE O ETERNO DRUMMOND, AMIGO MATANAEL!...VC SINTETIZOU EM POUCAS PALAVRAS ESSE BELO LIVRO DE 1940, QUE ANTECEDE OUTRA GRANDE OBRA DRUMMONIANA: A ROSA DO POVO, DE 1945!
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