DE: NÉLIDA PIÑON / PARA: CLARICE LISPECTOR
Por Nélida Piñon*
Publicado em vejario.abril.com.br
18/12/2020
Imortal da ABL escreve texto para a escritora
falecida em 1977, que completaria 100 anos de vida em dezembro de 2020
A BELEZA AGRADÁVEL DOS GESTOS
A missiva de Nélida Piñon destinada à Clarice Lispector revela a amizade
entre duas das nossas mais brilhantes escritoras do século XX. Espécie de
cerimônia íntima e agradável de gestos, que demonstra devoção e lealdade, além
da cumplicidade e da paixão pela memória afetiva do tempo, que a própria vida
cuida de refazer.
Com a autorização
carinhosa e verbal da romancista Nélida Piñon, o saite Domingo com Poesia reproduz a extraordinária beleza de uma correspondência
de celebração pela passagem dos 100 anos do nascimento de Clarice Lispector,
neste dezembro de 2020.
É uma leitura
prazerosa, remetida da Lagoa Rodrigo de Freitas ao coração de todos os seres
humanos que amam Clarice, cuja literatura perpassa pela alma do essencial.
(Diego Mendes Sousa)
“Amiga, em dezembro o Brasil e o mundo
celebrarão o centenário de seu nascimento. Não exagero ao afirmar que
outras terras pagam-lhe tributo. E isso porque sua obra fez de você uma mulher
universal. Sua efígie, ora estampada nos jornais e revistas, mostra uma Clarice
enigmática, bela, com olhos oblíquos, de traços ligeiramente orientais.
Sei que devo saciar sua curiosidade. E
contar-lhe que seus admiradores, querendo dar-nos a ilusão de ainda se
encontrar entre nós, inauguraram uma estátua sua, de corpo inteiro, na calçada
da Avenida Atlântica, cerca de sua casa. Dizem que alguns a visitam na
expectativa de ouvi-la.
Mas não posso poupá-la das desditas nossas. A mais
recente refere-se a uma epidemia que se alastra pelo planeta a ameaçar a
sobrevivência da espécie. É tal seu efeito letal que nem a ciência, os poderes
públicos nos socorrem. E menos ainda a tecnologia que vinha pregando sermos
imortais. Ah que ledo engano.
Por comando generalizado, há meses estamos
encerrados em nossos tugúrios. Forçados à solidão absoluta, ao convívio
familiar nem sempre amistoso, privados da liberdade, do pão que escasseia.
Sobretudo aguentando o fardo de nossas almas que nem sabíamos ter. É uma
clausura equivalente aos mosteiros medievais, mas talvez sem o consolo de Deus.
Estou ao abrigo do lar. Daqui faço
considerações que alarguem seus horizontes, simples porções da realidade atual,
da civilização brasileira. Confesso-lhe que o Brasil mudou muito desde que nos
deixou em 1977, e tanto que mal vislumbro seus escaninhos, a matéria que nos
constitui.
Pois como entender as transformações sofridas se os
rastros deixados foram sendo apagados, em consonância com nossa volúpia de
desrespeitar a identidade nacional. Sob o risco portanto de se forjar uma sociedade
à mercê do caos. Talvez me exceda, perco a dimensão do que é cívico,
moral, institucional. Mas vítima que sou do curso da história, sucumbo ante a
crescente intolerância, a radicalidade ideológica, a corrupção desenfreada, a
escassa civilidade. O que dizer da violência urbana e doméstica, da crença de
ser mais fácil odiar que amar.
Como filhas de imigrantes defendemos a justiça
social em vários momentos públicos. Acreditávamos que a educação e a
cultura podiam arrancar os brasileiros do degredo da ignorância ao lhes
facultar o conhecimento libertário. Pois urge preencher as lacunas oriundas das
desigualdades sociais e restaurar a dignidade humana. Neste capítulo, aliás, os
escritores seguem resistindo, como você o fez. Fiéis à arte, à linguagem que
arrola os sentimentos segundo a carga poética da sensibilidade pátria. Com
intérpretes do Brasil, junto com as demais consciências vivas, damos combate à
barbárie em curso no mundo.
O que nos mantém alerta, querida Clarice, é a
atração pela luxúria do corpo e do espírito, é o repertório dos prazeres
regidos pelo dom da vida. Aqueles favores que nos abençoam a despeito até da pobreza.
Eu a evoco com frequência. Há pouco mais de um ano
arrematei em um leilão um quadro seu, dos poucos que pintou. Não poderia
permitir que você fosse habitar uma casa estranha. Ele está ao lado daquele que
fez em homenagem ao meu livro Madeira Feita Cruz, e agora ambos expressam nossa
aliança, nossa irmandade.
Também rememoro o dia que fomos à PUC, do Rio, por
motivo de um seminário literário, e você, subitamente irritada com o hermetismo
dos debates, arrastou-me para o câmpus, e encostada no balcão do quiosque,
sorvendo seu cafezinho, pediu-me que regressasse ao auditório e lhes
transmitisse o recado: “Se eu tivesse entendido uma só palavra de tudo que os
senhores disseram, eu não teria escrito uma única linha dos meus livros”.
Ao deixá-la no táxi, disse-me que ao chegar em casa
iria saborear o frango assado que sobrara do almoço. Naquele instante senti
tanta ternura, quis protegê-la, que o Brasil afinal reconhecesse sua grandeza.
Quantas aventuras vivemos ao sabor dos
dezoito anos de amizade. Entre risos e lágrimas, íamos às cartomantes, na ânsia
de perscrutar o futuro. Mesmo no hospital da Lagoa, dias antes da sua
despedida, recriminou Nadir, sua cartomante favorita, por não ter previsto a
doença que a conduziu ao leito hospitalar, onde, lembra-se, me mantive ao seu
lado até o suspiro final. Olhando-a, então, imaginava sua família chegando
ao Nordeste, fugida dos pogroms, padecendo tantas dificuldades. Sem adivinharem
que a criança levada ao colo, minha amiga, aportaria no futuro fulgor à língua
portuguesa, de que se tornaria mestra.
Aqui fico, querida Clarice, no seu Rio que segue
lindo, mas sofrendo os efeitos da peste que até parece com a de Florença, do
século XIV. Mas cuide-se, onde esteja. O Brasil e eu agradecemos que seja
brasileira. Até nosso próximo encontro. Da sua Nélida.
*Nélida Piñon é escritora e integrante da Academia
Brasileira de Letras, a qual já presidiu.
Que primor. Uma sensível e tocante homenagem. Trouxe um cadinho de Clarice pra nós!
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