A TRAVESSIA DA LUZ DE CELI QUERENÇOSA: DA POESIA NASCIDA À ESCRITA AMADURECIDA
Por Diego Mendes Sousa*
“Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as
coisas”.
Federico García Lorca
O livro Travessia (Batel, 2020), de Celi Luz,
vem a lume, premiado pela União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro
(UBE-RJ). E a escolha do presente volume amplifica o reconhecimento da Autora,
que, ao meu olhar, tem a obsessão do ir. Travessia
é uma sondagem de caminhos.
Celi
encerra o livro com uma pergunta intrigante: “Havia o céu cobrindo todo o quintal. Onde andam as margaridas?”.
Na ideia do verso, andar é estar. Isso é fascinante e imagético! Apenas na
Poesia, movimentar é permanecer. Estou na gramática metafórica e metonímica da
poesia e para essa, subscrevo com Celi, a imagem se sobrepõe à linguagem.
Celi Luz
traz muito da aragem de absinto de Federico García Lorca, quando ela introduz,
nos seus poemas, palavras no diminutivo. Palavras essas que não desejam outra
coisa, senão música. Atravessar é passar como o vento. Diz Celi: “Vento é que leva pessoas para a sorte.”.
A poesia é
uma imaginação que cruza a realidade e o insondável. Quem se abisma na
encruzilhada da palavra também se destina ao mistério contagiante da promessa
transcendental de mergulhar em horizontes vários. Aqueles que somente a
intimidade literária permite conhecer e conceber. É o percurso sublime da
estética, posto a toda prova.
Na Música
Popular Brasileira, uma canção de Milton Nascimento, também intitulada Travessia, arrebata o tempo com essa
dicção do vento, tão fortemente expresso por Celi, no corpo dos seus escritos.
O
itinerário de Celi Luz é de poeta nascida, que chega em Travessia como escritora plena e amadurecida. E como viajante da
alta poesia, Celi, em sua sensibilidade, leva-me ao dorso do seu roteiro
iluminado.
Celi Luz
estreou na literatura brasileira com O
Sol da Palavra, em fina publicação da prestigiada editora Ibis Libris. Pela
Edições Galo Branco, do Rio de
Janeiro, saíram mais duas obras: Em razão
do Amor (com a versão, em língua espanhola, de Helena Ferreira) e 50 Poemas Escolhidos pelo Autor. Experiências
editoriais que a colocaram em destaque nacional e angariaram os maiores elogios
de intelectuais de proa, como Olga Savary, Marcus Vinicius Quiroga e Gilberto
Mendonça Teles.
Gosto dessa
rota de rápidos movimentos que Celi desperta na gente: “Só os bravos têm a glória de ir adiante.”. E não para por aí, Celi
Luz usa cintilações interessantes que vão induzindo o leitor através de um mapa
de lugares: do Pará ao Paraná, do Recife a Ouro Preto, de Natal a Buenos Ayres.
Outras margens de afetos e de mundos, feito exímia andarilha universal, como
prescreve a epígrafe de Guimarães Rosa, nesta obra.
Livre, Celi
convoca ao seguir: “Siga! Siga!”; “lá
vai”; “vamos”; “ir embora”. Palavras que gravam o seu “passaporte sem nome.”.
“Mas foi-se embora com outro tempo.”. - Nessa estrada, Celi também revive o pretérito. O passado com os seus
adeuses, com os seus pássaros perdidos e viventes, com as suas chuvas passantes,
e tendo o seu olhar de infância como guião, acelerada “A 100 km por hora.”, pois “A
menina volta sempre à Ilha.”.
Fico
emocionado, extremamente comovido, com passagens tão belas como estes títulos: “Quem sabe das águas que rolaram?” e “Nascido da vontade de andar pela cidade.”.
Comovo-me também com estes versos: “Há
sempre um poeta feito garça / a olhar o pôr do sol na água. / É que ambos têm
fome.”.
Em 83
poemas ordenados por algarismos romanos, Celi Luz demonstra maestria em sua
poética. O poema de número XV (intitulado “Mas
a minha cachorrinha não volta”) é mágico e metafísico, obra-prima da escritura
Luziana ou mesmo Luzeira. Os poemas XVII, XLVII e LXVIII seguem o mesmo
brilhantismo. Neles, verifico o intenso requinte memorialístico, que sabe
eternizar momentos e identificar paragens de elevações anímicas. “Poeta em pouso toca o coração da cidade /
agradece toda aquela poesia e santidade/ que leva para sempre em sua bagagem.”.
Destaque-se ainda que a Autora transformou o fecho de cada poema em seu respectivo
título. Procedimento sábio, porque, com essa inversão, o leitor apreende logo
os encantos expostos nos últimos versos, que funcionam então como um mote.
Vai-se, assim, do fio ao pavio: “Viajo e
olho dentro / e tudo ao redor passa.”.
Celi é uma
poeta admirável e original, ressuscitação das grandes vozes femininas que a
precederam, como Cecília Meireles, Gilka Machado ou Henriqueta Lisboa. E digna
de respeito e de evocação elogiosa, de posteridade e de receber “a uva dos parreirais especiais para quem
ama.”.
Às vezes
irônicas, às vezes eróticas, sempre líricas e líquidas, as temáticas de Celi
Luz estão calhadas dentro do aroma doce e amargo da vida. Múltipla em seu
paladar de vidente, como se constata no poema “Eu plural de mim.”.
Celi Luz aprendeu muito bem a didática
do seu ídolo – e de todos nós - Fernando Pessoa, sobre a leveza do presente, a
fazer carretel no passado. A poesia que rodopia nos caminhos do ontem, a pensar
sempre na aurora do amanhã. São os trilhos de uma vocação sem par, enigmática e
solitária. Nandinho que empresta a Celi a alegria de escrever “e eu te chamo EFE PE carinhosamente.”.
E eu a designo claridade, clarão, fulgor, já que Luz é sobrenome de Celi
querençosa.
*Diego Mendes Sousa (Parnaíba/PI,
15 de julho de 1989) é escritor, jornalista, advogado, político, indigenista,
ambientalista e ativista cultural. Membro do PEN Clube do Brasil e detentor do
Prêmio Castro Alves da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro
(UBE-RJ), 2013, pelo conjunto da obra. Publicou 50 Poemas Escolhidos pelo Autor
(Edições Galo Branco, 2010), dentre outros títulos. É colunista do site DCP.
Celi Luz I Reprodução Google
POEMAS DE CELI LUZ ESCOLHIDOS POR DIEGO MENDES
SOUSA
XV
Ainda volto àquela janela de Resende
para ver o cargueiro acordando o horizonte
para ouvir o galo cantando com a passarada.
O cargueiro já vai
muito longe.
Quem escuta o galo é quem acorda cedo
hora boa da brisa adentrando a janela.
O rio no meio da gente e a igreja olhando do
alto.
Tudo isso já vai
muito longe.
Vem a lembrança da cachorrinha que ia comigo
e foi para longe, o longe que não tem volta.
Volto para beber o suco de milho, ainda volto.
Andar a esmo pelo trilho e ir
muito longe.
Mas a minha
cachorrinha não volta.
XVII
Te vejo na serra, meu pássaro do campo.
Preciso tanto
das verdes calmas
das chuvas passageiras
passando.
O tempo atravessa vida e obra
porto e pouso
no zigue-zague dessa estrada.
Relevo do teu corpo,
onde me ouso.
XLVII
Cidade dorme no vale, feito formigueiro.
A estrada não vê que fervilha o tempo inteiro.
O poeta pressente as horas em banho-maria
e entra na cidadezinha, tal qual formiga.
Foi dada a largada, os fiéis na corrida
é festa mais esperada: festa do padroeiro.
As luzes, os quitutes, as roupas, os esquetes
as musas casadoiras, as músicas, os folguedos.
A cidade acorda alegre e torna tudo alegre
a bandinha da praça toca o coração do poeta.
Ele diz um poema para a moça da janela
o sorriso dela é o maior encanto desse canto.
Poeta em pouso toca o coração da cidade
agradece toda aquela poesia e santidade
que leva para sempre em sua bagagem.
E seguem viagem o
poeta e o padroeiro.
XLVIII
Era uma cascata de verdade
queda-d’água e coisa e tal
águas da Família Imperial.
Foi reduzida, foi esquecida.
É conhecida como Cascatinha.
Quem sabe das águas
que rolaram?
LXVIII
Há um pássaro descontente
pio insistente
lá no alto da araucária.
Madrugada solitária.
Eu e ele, de certa
forma, conversamos.
LXXIII
Quantos “eus” posso fazer de mim?
Um perfil grafado, autografado.
Se estou fragmentada
(ou se estou inteira)
cada fragmento se recria em outro.
Um duplo meu em paralelo
em outra dimensão... Serei eu?
Se eu quiser um personagem:
rei, donzela, camponês ou puta...
Não viverei seu destino, não serei outra
mas posso criar quantos, tantos!
Quem os pariu dentro de mim?
Serão meus personagens o meu plural?
Eu plural de mim.
LXXXIII
Havia o céu e uma linha na serra
as doces manhãs de broa de fubá.
Havia o silêncio, o gado até sabia rezar.
Cresciam amarelos alaranjados
no calor de um sol de amor.
Havia um galo vermelho valente
pomar de sol, de sombra e de cores
um jardim todo de amores-perfeitos
e o desabrochar das margaridas.
Havia corridas, muitas corridas
para lugar nenhum, apenas corridas.
Balanço de corda, cheiro de chuva
bolinho e o ovo que suja avental.
Havia o céu cobrindo todo o quintal.
Onde andam as
margaridas?
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