O Conto da Semana
Amor de machão (conto)* de Dalton Trevisan
Dalton Trevisan/Foto: Divulgação
Essa história aí no papel não é
verdade. Na época eu tive um caso com uma moça. Sentamos por acaso no mesmo
banco da Praça Osório. Foi como tudo aconteceu.
O nome dela é Maria. Ficamos juntos
num domingo e tal. Mais uns dias e a gente foi se encontrando. Já namoro sério.
O amor, essa coisa, sabe como é.
Seis meses de paixão louca e a gente
se amigou. Moramos nos fundos da casa de meus pais. Assim vivemos felizes quase
um mês.
Daí ela contou que foi noiva de um
tira. Ele queria voltar, ela não. Gostava dela. Só que machão: humilhava e
batia. Ás vezes a esperava na saída do emprego. Insistia na reconciliação:
- Se não é minha... de mais ninguém!
Foi quando esse tira Janjão apareceu
lá na oficina. Me intimou para ir, sem falta às duas da tarde, até a delegacia.
Só uns esclarecimentos.
Assim que entrei, ele e mais dois, nem
pediram documento. Me recolheram nos fundos, já cobrindo de porrada. Mandaram
tirar a roupa e continuaram a bater. Sob as ordens do tal, me fizeram comer
sabão.
Deram sete choques elétricos nas
partes. Gritei e pedi socorro. Você acudiu? Nem eles. Fui amarrado no
pau-de-arara, apanhando com mangueira e borracha de pneu. Doía mais porque era
um dia frio.
Ali de cabeça para baixo e na boca um
pano ensopado de urina.
O Janjão batia com vontade:
- Tá gostando, tá?
E cada vez que eu gemia.
- Isso é só o começo!
No fim me levaram lá pro Umbará.
Pendurado pelos pés, desceram por uma corda no fundo do poço. Afundaram minha
cabeça na água gelada.
Três vezes.
Só na afoguei porque um deles mandou
parar.
De volta deram esse papel para
assinar. Você dizia que não? O tanto que apanhei, eu assumia até aquelas mortes
lá na guerra. Sem mesmo ler.
Depois entraram com o tal careca. Esse
eu conheci lá na delegacia. Antes nunca vi. O nome parece que Edu. Tinha feito
um roubo numa loja. Com mais dois. Um deles acaso era eu.
Daí trouxeram as vítimas para o
reconhecimento. Os cinco disseram que os ladrões estavam com máscaras. Logo não
podiam saber.
Em seguida me trancaram numa cela.
Foram até a minha casa e trouxeram a Maria. Falaram que eu era marginal
conhecido e fichado. Ela devia me denunciar. Bastou se recusar e bateram nela
também. Depois de apanhar bastante, soltaram a pobre. Com a promessa que nunca
mais ia me ver.
Daí quiseram que eu assinasse mais um
assalto a ônibus de turismo. Lá vieram outras vítimas. De novo não me
conheceram. E não tiveram nenhum crime para me enquadrar.
Depois eu soube que o tal Janjão e
esse Careca eram sócios. O ladrão trabalhava para o polícia. Tinha umas vinte
passagens de roubo e tal.
Parece que deu um carro e quatro mil
paus ao tira. Saiu faceio pra rua. Eu purguei lá, apanhando mais uma semana. E
o tipo nem um dia ficou preso.
Pensei de acusar os dois ao delegado.
Me disseram pra esquecer. Até a doutora Kátia, advogada de porta de cadeia, que
me atendeu na época, fez um trato com o Janjão.
Antes de me soltarem, ele foi lá em
casa. Ameaçou de morte o pai e toda a família se pensasse em denúncia.
Depois disso era fatal a separação. A
Maria ficou com medo. Confesso que eu também. A sombra do maldito rondando
sempre a casa.
Ela se despediu em lágrimas. E foi uma
pena. A gente bem se gostava.
Mais tarde eu soube que voltou para o
tal. Guardo até hoje as marcas de borracha na sola dos pés. Todos os choques
elétricos e as porradas que levei? As maldades todas que ele fez?
Por ela é que tinha feito. Só podia
ser amor de machão. Que nenhum outro podia lhe dar.
Foi o que Maria pensou. E pensou
certo. Sempre judiada. Apanhando sempre. Tudo pela glória de passear de braço
com esse bigodinho de merda.
Até o dia em que a deixou por uma
carinha bonita qualquer. Bonita? Se você gosta de ruiva e sardenta e dentuça.
Ah, nem de longe se iguala ao rostinho lavado e fresco da minha perdida Maria.
*Transcrito
de O maníaco do
olho verde, p. 25
O Conto da Semana
Reviewed by Natanael Lima Jr
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