E também não facilite com a palavra poesia
Publicado em obvious lounge por Vitor Ribeiro*
Na poesia, a invasão de especuladores é um
fenômeno particularmente recente, ganhando contornos diferentes a cada dia. A
desmistificação desta arte trouxe consigo, além de uma maior inclusão e
propagação, uma possibilidade de venalidade e pauperização. Afinal de contas, a
que rumos estão conduzindo a poesia?
Poeta Carlos
Drummond de Andrade/Foto: Divulgação
Carlos
Drummond de Andrade no famoso poema O seu santo nome afirma, em um de seus
versos mais célebres, “não facilite com a palavra amor”. A audácia da
ressignificação dada ao verso nele mesmo se justifica: a poesia (ou o que se
diz poesia) tem sido usada a esmo e em proveito das mais obscuras intenções, se
tornando antes de uma substância, um acessório.
É
notório que, atualmente, a poesia tem ganho um grande número de adeptos pelos
mais diversos motivos, do desencargo de consciência à real vontade de dizer
algo. Este movimento de popularização traz benefícios inestimáveis para quem
escreve e para quem deseja escrever, como a queda daquele estigma do poeta
sofredor, do poeta tuberculoso, do poeta suplicando amor. A arte foi trazida ao
chão da rua e ao chão da fábrica, desmistificando-se e flexibilizando-se.
No
entanto, toda popularização no seio do moderno é acompanhada por um processo de
reificação, criado não só por senhores abstratos em instituições obtusas, mas
também por aqueles que veem a arte como um meio, não como um fim. Aquém das
capacidades e dos intuitos de bons ou maus poetas, o adjetivo poético torna-se
sinônimo de um produto muito acessível, de um oásis de sensibilidade e de
sentimento em meio à brutalidade da vida cotidiana: um uso um tanto quanto
perigoso, por ser despudorado.
A
questão não passa pela proibição do predicado “muito poético”, mesmo porque
isso seria afirmar o academicismo e a unilateralidade do ato de escrever; a
questão passa pelo sujeito e pelo intuito deste sujeito em dizer algo assim.
Vender aroma, toque e significado por poesia é uma metonímia que pode ter
proporções estruturais, com o tempo. Por mais perigoso que seja falar sobre
Marx, o caso torna inevitável: a poesia é um veículo perfeito para criar um
fetiche de mercadoria, pois é abstrata, é indefinível, é aceitável em qualquer
meio.
Em
outro ponto, há aqueles que visam tirar a poesia do âmbito da arte e levá-la ao
âmbito do entretenimento. Transformam a existência surda e solitária da palavra
em espetáculo, com aplauso, tempo estipulado, juri e prêmio para o vencedor. Um
paradoxo e tanto, haja vista que a quintessência da arte de escrever, de Proust
a Waly Salomão, é o caráter de finalidade, de solitude e de pessoalidade
inerentes ao ato.
Waly Salomão:
O cárcere e a experiência de catarse
Mas
a poesia poderia passar longe de toda a venalidade? É evidente que não. Por
exemplo, quando se fala em editoração e publicação, se fala em mercado: de que
outra forma seria propagada literatura? A questão do mercado editorial é
indissolúvel, é o próprio mercado quem filtra e define o que será ou não
propagado. Apesar de a internet ter dado diversas oportunidades de crescimento
a autores, é o mercado quem legitima qualquer esforço.
O
que a última contraprova significa? Que o limite entre a criação literária e o
produto literário é algo tênue e que não permite extremismos. Há exemplos como
o editor José Olympio e a Editora Patuá, mais recentemente, de uma incorporação
benéfica da arte ao mercado, por não envolver qualquer interesse que não seja o
de manter uma tradição em voga e de propagar algo qualitativamente tido como
aceitável, dentro do produto que é o livro, não a palavra.
Há
de se convir que esta discussão não terá fim com um artigo, ou ainda, com uma
única posição. Há de se convir, também, que toda a discussão suscitada ao redor
desta questão não será sem motivo, mas uma defesa séria de interessados nisso,
para o bem da arte ou para os negócios. O fato é que, a cada dia, esta temática
é engendrada naqueles que se incomodam com certas especulações em torno daquilo
que, passionalmente, aceitam como verdade de vida. Por sorte e para todo caso,
sempre haverá alguém disposto a proteger a poesia dos ventos e da chuva, ainda
que não se saiba jamais o que é a própria poesia em si.
*Victor Ribeiro é colunista do site
obviouslounge
E também não facilite com a palavra poesia
Reviewed by Natanael Lima Jr
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