A Arte da Escuta
Por Fátima Quintas*
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A
celeridade do mundo contemporâneo distorce as circunstâncias. Pessoas se atordoam;
mexem-se de um lado para o outro em um frenesi sem controle. O importante é dar
conta da ciranda galopante. Os diálogos tornam-se superficiais, atendem apenas
ao imediatismo do momento. A escuta transforma-se em alguma coisa incompatível
com o tempo de que se dispõe. Um dia atrás do outro – a avalanche dos
acontecimentos se sucede como se a relevância do existir estivesse na corrida
por alguma coisa que nem sempre sabemos o que é.
Apesar
da sofreguidão diária, gosto de escutar o outro. Aliás, necessito conversar com
amigos e desconhecidos. E aprendo tanto com os comentários alheios! Na semana
passada, exatamente quarta-feira, dia 29 de agosto, entrei num elevador lotado;
antes, a fila indiana já denotava impaciência. Um senhor, provavelmente com
hora marcada, reclamava da inoperância dos elevadores. Eram exatamente seis
máquinas, a subir e a descer, sempre cheias, homens, mulheres e crianças
adaptando-se ao espaço que lhes cabia. Por fim, chegou a minha vez; entrei. Dei
boa tarde ao ascensorista, ele respondeu-me com um sorriso largo e franco.
Agradeci a receptividade; registrei a sua simpatia. Logo me respondeu: “Dona,
aqui ninguém me vê, surpreendo-me quando alguém me dirigi à palavra”. De
pronto, perguntei-lhe: “O senhor deve concluir a jornada de trabalho meio
“enlouquecido” com esse movimento contínuo”. Ao que retrucou: “Enlouquecido
não, enfadado”. A precisão do vernáculo me chamou a atenção; ele estava certo,
enfadado era o termo exato. O bate-papo fluiu: “O que faz para recuperar-se
desse enfado?”. Imediatamente confessou: “Trabalho seis horas. Ao largar, tenho
necessidade de ir a pé (estávamos na Av. Rosa e Silva) até a Av. Dantas
Barreto, passeando, respirando o ar dos espaços abertos para sentir que o mundo
é grande e não se limita a esse quadrado fechado e pesado em que me vejo. Nunca
falei isso a ninguém, só a minha mulher; também nunca me perguntaram. A senhora
é gente boa; qual a sua graça?”
Logo
me disse o nome. Não entendi. Repetiu; não consegui captar – um nome estranho.
O rosto, feliz; olhos grandes, cabelos curtos, dentes bonitos, mãos calejadas,
alguém de bem com a vida. Sua sabedoria me encantou: quem suspeitaria que
aquele homem deambulava quilômetros em busca da liberdade, da sensação de
compreender o mundo na sua magnitude, andar, andar, andar, em contraponto à
dureza do trabalho?
Imaginei-o
a olhar as árvores, a avistar o Rio Capibaribe, a água corrente, sempre indo,
evocando o filósofo Heráclito; pessoas nas calçadas, o mundo de todos, Drummond
sussurrando, “mundo vasto mundo”... A humanidade, a perenizar-se, eterna e
eternizante.
Quanta
coisa de depura da arte da escuta?! Nada mais intenso que o jorro do outro:
sentimentos, afetos, discordâncias, conflitos... A alma se revela no implícito
de cada um. Sem o espírito de reflexão, ninguém percorre caminho algum. A
escuta é uma forma de interiorizar o que vem do nosso próprio espelho,
reforçando o sentido da vida.
Ah,
se aprendêssemos a escutar! O mundo com certeza tornar-se-ia mais humano e mais
compreensivo.
*Fátima Quintas é antropóloga,
escritora, ensaísta, cronista e atual presidente da Academia Pernambucana de
Letras.
A Arte da Escuta
Reviewed by Natanael Lima Jr
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