O VITRAL, CONTO DE OSMAN LINS
Postado
por DCP em 06/07/2023
“Osman Lins nasceu no município pernambucano de Vitória de Santo Antão, em 5 de julho de 1924. Escreveu romances, contos, poemas, narrativas, livro de viagens e peças de teatro. Faleceu em São Paulo, em 8 de julho de 1978, aos 54 anos”.
O vitral*
Desde
muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando
faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de
alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que
este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão
retivera para sempre os cânticos.
– Ora…
temos tantos… – respondera o homem. Se tivéssemos filhos… aí, bem. Mas nós
dois! Para que retratos? Dois velhos!
A mão
esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da
solidão uma coisa tangível – e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor,
mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao
meio, e levantara-se.
– Está
bem. Você não quer…
(A voz
nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.)
– Suas
tolices, Matilde… Quando é isso?
Como se a
ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:
– Em
setembro – dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu…
– Ah! Uma
comemoração – interrompera o esposo. Vinte anos de casamento… um retrato ameno
e primaveril. Como nós.
Na
véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas
purificara-se da ironia e a repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao
estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um
oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter.
Agora,
ali estava o domingo, claro e tépido, mas não com as alegrias sonhadas, sem o
que tudo mais se tornara inexpressivo.
– Se você
não quiser, eu não faço questão do retrato – disse ela. Foi tolice.
– O
fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado? Ainda há tempo.
– Não.
Vou assim mesmo.
Abriu a
porta, saíram. Flutuavam nas raras nuvens brancas, as folhas das aglaias tinham
um brilho seco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação
de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.
Seguiram.
Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz
forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão
despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com
uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não
ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.
– Manhã
linda! – murmurou. Hoje eu queria ser menina.
– Você é.
A
afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a
aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas
caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua
exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual
Antônio para sempre estaria ausente.
Mas quem
poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo,
mas a causa mesmo de tudo que naquele instante sentia; e que, sem ele, o mundo
e suas belezas não teriam sentido?
Estas
perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.
–
Aproveite – aconselhou ele. Isso passa.
– Passa.
Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei.
As duas
sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus
passos.
– Não é
possível guardar a mínima alegria – disse ele. Em coisa alguma. Nenhum vitral
retém a claridade.
Cinco
meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar
sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à rua, abriram um portão,
desapareceram.
Ela
apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso
jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível:
enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. “Que
este momento me possua, me ilumine e desapareça – pensava. Eu o vivi. Eu o
estou vivendo”.
Sentia
que a luz do sol a trespassava, como um vitral.
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*Conto de Osman Lins publicado no livro “Os cem melhores contos brasileiros do século” (Editora Objetiva), seleção de Italo Moriconi.
![O VITRAL, CONTO DE OSMAN LINS](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyFXerJz94QOR_Pi6GKcl4Z--awOPc13gzHQWJUq2joiLqOJBwYPAMcJOcnc1nLRVaJIol_NeIEAjic8-JQf5KGXx6gVieRGPkTxAkpcyA1MM11pgTM8eP4BIberqMISGIRBDIIZ-45DRu4XPjdeLYA4VybdnVo5NOFNcwYSYIXo1lyQbxHO2I6JkSfIo/s72-c/Vitral.jpg)
Belíssimo conto.
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