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DE DUBROVNICK A AMESTERDÃO, PELO FUNDO DA AGULHA

 

Postado por DCP I em 05/06/2023

 

Por Dora Nunes Gago*

 

*De https://revistacaliban.net/













Sentada à janela no voo de Dubrovnick para Amesterdão, relembro outras viagens, outros tempos: os cruzares do oceano Pacífico, em múltiplas viagens de Hong Kong até aos Estados Unidos. Mas não agora. Este é um voo breve de 2h30, a medida certa de um cirandar pela Europa. Esse velho continente que, mesmo com os seus declínios, feridas, desilusões, ainda surpreende. E, apesar de tudo, não consigo deixar de sentir que apesar de todos os outros já cruzados, lhe pertenço.

 

Trago esculpidas na alma e na retina os pores do sol amalhados na serenidade azul do Adriático, esse magnífico braço do Mediterrâneo. Transporto no peito todas as cascatas, trilhos, pedras e raízes que os meus pés percorreram, desta vez, em grupo e não no costumeiro vagabundear solitário. Tenho dentro de mim o ronronar dos gãos sagrados do Kotor, que salvaram a cidade da peste, e nas calças, o bordado de amizade feito por um deles. Mas a estes lugares retornarei, após o repouso da poeira dos caminhos, com a lentidão de quem saboreia os lugares revisitados, seguindo as pegadas das palavras.

 

Agora é pelas palavras também o meu voo, com elas cruzo os umbrais do espaço e do tempo. Abro Pelo fundo da agulha (2017) do notável escritor brasileiro Antônio Torres que tive a honra de conhecer pessoalmente no festival literário Correntes de escritas em Fevereiro passado. Fico presa nos braços daquele protagonista multifacetado, desdobrado em tempos e lugares, Antão ou Totonhim. Vou lendo “como quem reza”, “não só para afastar maus pensamentos, mas principalmente isto, para tomar de empréstimo sonhos alheios” (Torres, 2017), na esperança de vir a ter os meus.

 

Um romance a revelar o confronto entre o meio rural e o urbano, consubstanciado na relação entre as personagens migrantes, provenientes do interior e os paulistas, espelhando o confronto de mundos culturais, acompanhado de um saboroso desfile de memórias, mas também de música (“um piano toca ao longe uma valsa de Bach”), pois letras de diversas canções marcam os momentos relevantes da vida do protagonista. Numa sinfonia interartes, também emerge o cinema, por exemplo, na presença de um filme fracassado, convertido num perfeito lugar de exilio -neste caso, a transposição para a tela de O Coração é um caçador solitário de Carson Mc Cullers. Ao reconstruir o entrançado das minhas memórias recordo-me de que foi esse o livro que me acompanhou nos primeiros tempos de Macau. E acrescento, se um mau filme pode ser um local perfeito de exílio, um bom livro é uma espécie de “jangada de pedra” (citando um título de Saramago) na qual podemos escapar desse mesmo exilio. À semelhança do protagonista, também eu pensei inicialmente que Carson Mc Cullers era um homem -até conhecer a vida dessa talentosa escritora falecida aos cinquenta anos.

 

Entre Paris, o Brasil (do romance) e o espaço aéreo a unir Dubrovnick a Amesterdão, aprendo que “um mapa-mundi que não inclua a Utopia não é digno de consulta” (Torres, 2017). Assim, enquanto vejo o mundo espreguiçando-se pela janela do avião, penso, não apenas nas utopias vindouras, mas também nas perspectivas de ver e entender o mundo, esse bouquet de contradições, simultaneamente vasto e limitado, desconhecido e familiar, grande e pequeno, consoante a lente com que o observamos. Aqui, abro um parêntesis para esclarecer que, no meu caso é mesmo com lentes progressivas. Para mim, aquela história de que a partir dos quarentas deixamos de ver as letras ao perto, mas enxergamos perfeitamente um idiota ao longe, para mim, já perdeu a validade… Em contrapartida, a mãe de Totonhim, o protagonista do romance de Antônio Torres, apesar da avançada idade, enfia a linha numa agulha, sem óculos. E as questões particularmente tocantes são, no caso dessa mulher “parideira”, sacrificada para criar os filhos: “com que ela sonhava enquanto enfiava a linha pelo fundo de uma agulha? Como teria visto o mundo, olhando-o unicamente através de um minúsculo buraco?”

 

Com efeito, é nestes modos diversos de olhar o mundo e os outros que se constroem os ninhos dos nossos sonhos — estes quer se alicercem na janela de um avião ou no buraco de uma agulha, comungarão sempre da mesma génese: a humana força de nos agarrarmos à vida como lapas à rocha ou de nos dispersarmos como a poeira dos caminhos, em busca da Utopia num mapa qualquer talvez ainda por desenhar. 




*Dora Nunes Gago é cronista, contista e ficcionista. Nasceu em São Brás de Alportel (Algarve) é doutorada em Literaturas Românicas Comparadas pela Universidade Nova de Lisboa (2007), Mestre em Estudos Literários Comparados e licenciada em Português-Francês pela Universidade de Évora. 


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DE DUBROVNICK A AMESTERDÃO, PELO FUNDO DA AGULHA DE DUBROVNICK A AMESTERDÃO, PELO FUNDO DA AGULHA Reviewed by Natanael Lima Jr on 21:35 Rating: 5

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