NO PASSO DO FREVO COM MANUEL BANDEIRA
Postado por DCP em 19/02/2023
Por Natanael Lima Jr*
O site DCP entra no passo do
frevo e celebra 104 anos de publicação do livro “Carnaval”, do poeta
pernambucano Manuel Bandeira.
Lançada em 1919, a obra foi
eternizada, principalmente, por um de seus mais icônicos poemas, “Os Sapos”,
que criticava a estética do Parnasianismo.
Comemore o carnaval e aproveite
também para ler e conhecer melhor a obra deste notável poeta brasileiro.
Os sapos
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à
guerra!"
- "Não foi!" -
"Foi!" - "Não foi!".
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi
rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" -
"Foi!" - "Não foi!".
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não
sabe!" - "Sabe!".
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
Bacanal
Quero beber! cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em
caco...
Evoé Baco!
Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!
Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!
Se perguntarem: Que mais
queres,
Além de versos e mulheres?...
— Vinhos... o vinho que é o
meu fraco!...
Evoé Baco!
O alfanje rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não
domo!...
Evoé Momo!
A Lira etérea, a grande
Lira!...
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos,
Evoé Vênus!
A Canção das Lágrimas de um
Pierrot
I
A sala em espelhos brilha
Com lustres de dez mil velas.
Miríades de rodelas
Multicores - maravilha! -
Torvelhinham no ar que alaga
O cloretilo e se toma
Daquele mesclado aroma
De carnes e de bisnaga.
E rodam mais que confete,
Em farândolas quebradas,
cabeças desassisadas
Por Colombina ou Pierrete
II
Pierrot entra em salto súbito.
Upa! Que força o levanta?
E enquanto a turba se espanta,
Ei-lo se roja em decúbito.
A tez, antes melancólica,
Brilha. A cara careteia.
Canta. Toca. E com tal veia,
com tanta paixão diabólica,
Tanta, que se lhe ensanguentam
Os dedos. Fibra por fibra,
Toda a sua essência vibra
Nas cordas que se arrebentam.
III
Seu alaúde de plátano
Milagre é que não se quebre.
E a sua fronte arde em febre,
Ai dele! e os cuidados
matam-no.
Ai dele! e essa alegria,
Aquelas canções, aquele
Surto não é mais, ai dele!
Do que uma imensa ironia.
Fazendo à cantiga louca
Dolorido contracanto,
Por dentro borbulha o pranto
Como outra voz de outra boca:
IV
- "Negaste a pele macia
À minha linda paixão
E irás entregá-la um dia
Aos feios vermes do chão...
"Fiz por ver se te podia
Amolecer - e não pude!
Em vão pela noite fria
Devasto o meu alaúde...
"Minha paz, minha
alegria,
Minha coragem, roubaste-mas...
E hoje a minh'alma sombria
É como um poço de
lástimas..."
V
Corre após a amada esquiva.
Procura o precário ensejo
De matar o seu desejo
Numa carícia furtiva.
E encontrando-o Colombina,
Se lhe dá, lesta, socapa,
Em vez de beijo um tapa,
O pobre rosto ilumina-se-lhe!
Ele que estava de rastros,
Pula, e tão alto se eleva,
Como se fosse na treva
Romper a esfera dos astros!...
Sonho de uma terça-feira gorda
Eu estava contigo. Os nossos
dominós eram negros,
[ e negras eram as nossas
máscaras.
Íamos, por entre a turba, com
solenidade,
Bem conscientes do nosso ar
lúgubre
Tão constratado pelo
sentimento felicidade
Que nos penetrava. Um lento,
suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos
penetrava como
[uma espada de fogo...
Como a espada de fogo que
apunhalava as santas
[extáticas.
E a impressão em meu sonho era
que estávamos
Assim de negro, assim por fora
inteiramente negro,
— Dentro de nós, ao contrário,
era tudo claro
[ e luminoso!
Era terça-feira gorda. A
multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores
de fanfarra
Passavam préstitos
apoteóticos.
Eram alegorias ingênuas, ao
gosto popular,em cores cruas.
Iam em cima, empoleiradas,
mulheres de má vida,
De peitos enormes — Vênus para
caixeiros.
Figuravam deusas — deusa
disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.
A turba, ávida de
promiscuidade,
Acotevelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido.
E, aqui e ali, virgens
atiravam-lhes flores.
Nós caminhávamos de mãos
dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negro, negros...
mas dentro em nós era tudo
claro e luminoso!
Nem a alegria estava ali, fora
de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a
alegria,
— A profunda, a silenciosa
alegria...
Arlequinada
Que idade tens, Colombina?
Será a idade que pareces?...
Tivesses a que tivesses!
Tu para mim és menina.
Que exíguo o teu talhe! E
penso:
Cambraia pouca precisa:
Pode ser toda num lenço
Cortada a tua camisa...
Teus seios têm treze anos.
Dão os dois uma mancheia...
E essa inocência incendeia,
Faz cinza de desenganos...
O teu pequenino queixo
— Símbolo do teu capricho —
É dele que mais me queixo,
Que por ele assim me espicho!
Tua cabeleira rara
Também ela é de criança:
Dará uma escassa trança,
Onde eu mal me estrangulara!
E que direi do franzino,
Do breve pé de menina?...
Seria o mais pequenino
No jogo da pompolina...
Infantil é o teu sorriso.
A cabeça, essa é de vento:
Não sabe o que é pensamento
E jamais terá juízo...
Crês tu que os recém-nascidos
São achados entre as
couves?...
Mas vejo que os teus ouvidos
Ardem... Finges que não
ouves...
Perdão, perdão, Colombina!
Perdão, que me deu na telha
Cantar em medida velha
Teus encantos de menina...
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