O LETRAMENTO LITERÁRIO NA FORMAÇÃO DO SER
Postado por DCP em 21|08|2022
Por Neilton Limeira Florentino de Lima*
Segundo a Base Nacional Comum Curricular
– BNCC (2021), enquanto linguagem artisticamente organizada, a
Literatura enriquece a percepção e a visão de mundo de cada ser. Através do
artesanato com as palavras, ela cria um universo que permite a cada leitor(a)
aumentar a capacidade de ver e sentir. Ou seja, a Literatura ajuda, não só a
ver mais e melhor, mas a colocar em questão muito do que o humano vê e
vivencia.
O referido documento inclui as obras da
tradição literária brasileira e de suas referências ocidentais – em especial da
Literatura portuguesa –, bem como as obras mais complexas da Literatura
contemporânea e das Literaturas: indígena, africana, afro-brasileira e
latino-americana. Na prática, é fundamental tocar em determinados segmentos e
conceitos, a saber: a Literatura Infantojuvenil; a Literatura
periférico-marginal; o Culto (próximo ao Erudito); o Clássico (no que diz
respeito ao Cânone); o Popular; as Culturas de massa; das mídias e as juvenis.
Além da BNCC, é fundamental a dialética com a concepção de leitura adotada
pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN’s (1997, p. 53):
[...] um processo no qual o(a) leitor(a) realiza um
trabalho ativo na construção de significado do texto, a partir de seus
objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto, sobre o(a) autor(a), de tudo o
que sabe sobre a língua: características do gênero, do(a) portador(a), dos
sistemas de escrita, etc.
Desse modo, é essencial a inclusão, em níveis
distintos, da Literatura na formação do ser, desde a perspectiva dita
tradicional, física, até as atuais referências virtuais e midiáticas, via o
universo digital. Isto posto, para cada criança e jovem, ao se relacionar com a
leitura das obras literárias, há etapas a serem descobertas, vivenciadas e,
consequentemente, transformadoras. Na Educação Infantil (até os 5 anos de
idade): o eu, o outro e o nós; o corpo, gestos e movimentos; os traços, sons,
cores e formas; a escuta, a fala, o pensamento e a imaginação; os espaços,
tempos, quantidades, relações e transformações; no Ensino Fundamental: o(a)
leitor(a)-fruidor(a), de 6 a 14 anos, cuja relação com a leitura, com os livros
deve ter seu papel lúdico, prazeroso deveras estimulado; no Ensino Médio: o
protagonismo do(a) jovem a partir dos 15 anos de idade, via maturação das
descobertas do corpo, da mente, em dialética com o mundo.
Afinal, ao tratar de Literatura, há o diálogo com a
Arte, e desta com a vida. E ao esteticamente discutir a existência e suas fases
temporais, o poeta Oswald de Andrade, (aqui celebrado também pelo Centenário da
Semana de Arte Moderna de 1922) anuncia, no poema “As quatro gares”:
Infância
O
camisolão
O
jarro
O
passarinho
O
oceano
A
visita na casa que a gente sentava no sofá
Adolescência
Aquele
amor
Nem
me fale
Maturidade
O Sr.
e a Srª Amadeu
Participam a V. Exa.
O feliz nascimento
De sua filha
Gilberta
Velhice
O
netinho jogou os óculos
Na
latrina
Em
cada etapa das estações anunciadas no texto, as vivências do ser: quer nos
substantivos das coisas que surgem para a criança, quer da rotina, da natureza,
das relações sociais; na fugaz, mas intensa adolescência, o despertar para a
paixão e saudade do vivido; na perspectiva da vida adulta, as convenções,
evidenciadas nas ações e na linguagem anunciada (distinta das estações
anteriores), bem como um novo ciclo surgindo; por fim, o encontro temporal da
estação inicial com o nascimento da última, em um ciclo contínuo, cuja
inocência, ainda que ironicamente, é a perenidade da vida.
Para
que de fato tenhamos tais realidades, propostas pelos documentos anteriores e
aqui interpretados via um poema, na prática, é fundamental, além da família, o
papel no ambiente escolar, via ações pedagógicas por meio dos Docente e suas
estratégias didático-metodológicas. Isto posto, para efetivar o intento
orientador, deve-se adotar uma abordagem voltada para as concepções de leitura
que fundamentem o caminho a ser seguido para o Letramento literário no ambiente
escolar e acadêmico. Tal perspectiva torna-se basilar ao processo educativo,
não só ao promover a urgente inclusão sociocultural das pessoas na própria
transformação, mas também por fundamentar o desenvolvimento de competências e habilidades
como: análise, síntese, reconstrução e construção de novos conhecimentos que
direcionam para as possibilidades de uma atuação significativa, comprometida e
crítica junto à coletividade.
A
partir da complexidade dos textos literários, na concepção da multiplicidade de
sentidos que as obras literárias suscitam, o debate sobre os temas e conteúdo
contribui para problematizar a relação entre o real e o ideal e construir a
identidade e a autonomia pela literatura, o que, conforme Zilberman (1999 apud
SARAIVA, 2008, p. 22), “constitui-se uma síntese, por meio dos recursos da
ficção que têm amplos pontos de contatos com o que o leitor vive
cotidianamente”. Nesse sentido, o(a) educador(a) como mediador(a) exerce um
papel essencial na viabilização das condições em que crianças e adolescentes que
não têm vez e nem voz, efetivem sua própria aprendizagem de leitura, de acordo
com seus interesses, necessidades, realidade e fantasias.
Desse
modo, a ressignificação, pela qual vem passando o conceito de leitura, deve
remeter o(a) professor(a) à busca do conhecimento de alguns pressupostos que
embasam sua fundamentação, considerando-se a ampliação conceitual de leitura
que, na concepção de Freire (1989, p. 11), “o ato de ler não se esgota na
codificação pura da palavra escrita, mas se antecipa e se alonga na
inteligência.”
Ensinar
na perspectiva do Letramento significa considerar o conjunto de práticas
discursivas, as diversas formas de usar a linguagem e promover significado à
fala e à escrita. Para isso, deve-se adotar como referência a metodologia
produtiva e o desenvolvimento de atividades em sala de aula, inclusive a
organização de oficinas literárias de análise e produção de textos dentro e
fora da sala de aula (como em espaços livres), bem como o uso de diversos
multimeios que o trabalho atual com a literatura requer. Essas atividades
constituem vias para desenvolver o pensamento criativo e as habilidades dos
estudantes para a interpretação e análise de textos, assim como a produção
literária, viabilizando a tríade linguagem-literatura-organização curricular na
sala de aula.
Assim,
é necessário que a aprendizagem da leitura e do letramento literário se
instaure como perspectiva de linguagem artística e polissêmica, uma vez que a
literariedade possibilita as mais ricas e produtivas experiências do(a)
leitor(a) com o real e o surreal. Portanto, a obra literária constitui-se uma
via de leitura prazerosa para a aquisição e construção de novos conhecimentos e
de atitudes pelas crianças, sendo a escola a protagonista de práticas leitoras,
que contemplem o letramento literário ao invés de somente a leitura da obra,
pois, conforme Cosson (2012, p. 47), “a literatura é uma prática e um discurso,
cujo funcionamento deve ser compreendido criticamente pelo aluno”, cabendo ao
professor(a) fortalecer essa visão crítica. Nos dizeres de Afrânio Coutinho
(1978, p. 8 apud SILVA, 2009, p. 140):
A Literatura, como toda arte, é
uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do
artista e retransmitida através da língua para as fôrmas que são os gêneros e
com os quais ela toma corpo e nova realidade. Passa, então, a viver outra vida,
autônoma, independente do autor e da experiência de realidade de onde proveio.
Os fatos que lhe deram às vezes origem perderam a realidade primitiva e
adquiriram outra, graças à imaginação do artista. São agora fatos de outra
natureza, diferentes dos fatos naturais objetivados pela ciência ou pela
história ou pelo social.
Em
primeiro lugar, deve servir para ensinar a leitura, a partir de três aspectos:
expressivo, interpretativo, dialogado. Pondo, desde o início, o(a) aluno(a) em
contato direto com o texto literário, e fazê-lo(a) adquirir a familiaridade com
a língua e a coisa literária, levando-o(a) a adquirir o gosto da literatura, a
justa compreensão de seu valor e significado. Ao apresentar algumas passagens
poéticas, de vozes diversas (Bento Teixeira, Gregório de Matos Guerra, Manuel
Bandeira, Ascenso Ferreira, Carlos Pena Filho, João Cabral de Melo Neto e Miró
— que se eternizou este ano) observa-se a capacidade de cada poeta, via criação
estético-ideológica, de tematizar e anunciar seu olhar sobre Recife e Olinda:
Uma boca rompeu o mar inchado, /
Que na língua dos bárbaros escura / Paranambuco – de todos é chamado: / De
–Paraná– que é Mar, – Puca, rotura (TEIXEIRA. In: FERREIRA, 2001, p. 97)
Por entre o Beberibe, e o oceano
/ Em uma areia sáfia, e lagadiça / Jaz o Recife povoação mestiça, / Que o belga
edificou ímpio tirano. (MATOS GUERRA, 1990. p. 1191.);
[...] — Muito contas, cotovia! /
E que outras terras distantes / Visitaste? Dize ao triste. // — Líbia ardente,
Cítia fria, / Europa, França, Bahia. // — E esqueceste Pernambuco, / Distraída?
// — Voei ao Recife, no Cais
/ Pousei na Rua da Aurora. // —
Aurora da minha vida / Que os anos não trazem mais! (BANDEIRA, 1993, p. 298)
Sozinho, / nas ruas desertas / do
velho Recife / que atrás do arruado / moderno ficou... / criança de novo / eu
sinto que sou: // — Que diabo tu vieste fazer aqui, Ascenso? (FERREIRA, 1981,
p. 97)
Olinda é só para os olhos, / Não
se apalpa, é só desejo. / Ninguém diz: é lá que eu moro / Diz somente: é lá que
eu vejo. (PENA FILHO, 2011, p. 25)
Aqui o mar é uma montanha /
regular redonda e azul, / mais alta que os arrecifes / E os mangues rasos ao
sul.// Na cidade propriamente / velhos sobrados esguios / apertam ombros
calcários / de cada lado de um rio. (MELO NETO.
In:
http://www.domingocompoesia.com.br/2012/03/um-brinde-recife-olinda-e-poesia.html)
Lá vai Recife / Num mais um fim
de tarde / As águas do Capibaribe cor de sangue / Nos ombros dos negros que
moram nos Coelhos / Unhas na lama e a classe média comendo / ostras / de frente
ao Acaiaca. (MIRÓ.
In: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/pernambuco/miro.html)
Isto
posto, os conceitos referentes à prática do Letramento Literário, são: o prazer
na leitura do texto, a discursividade, a intertextualidade, a mimesis, o papel
da teoria literária, a diversidade de gêneros, a leitura escolarizada, as
línguas e as estruturas da literatura. E, conforme Magda Soares:
Não se lê um editorial de jornal
da mesma maneira e com os mesmos objetivos com que se lê a crônica de Veríssimo
no mesmo jornal; não se lê um poema de Drummond da mesma maneira e com os
mesmos objetivos com que se lê a entrevista do político; não se lê um manual de
instalação de um aparelho de som da mesma forma e com os mesmos objetivos com
que se lê o último livro de Saramago. […] (SOARES, 2005, p. 30-31 apud MENDONÇA
e BUNZEM, 2015, p. 28).
Por
fim, na dialética com os novos leitores e suas sensibilidades e habilidades com
a tecnologia, com o cyberspace, com a linguagem do hipertexto e os aspectos
multimodais, há o Letramento Digital:
O letramento digital é mais que o
conhecimento “técnico”: uso de teclados, interfaces gráficas e programas de
computador…Ele inclui ainda a habilidade para construir sentido a partir de
textos multimodais, isto é, textos que mesclam palavras, elementos pictóricos e
sonoros numa mesma superfície. Inclui também a capacidade para localizar,
filtrar e avaliar criticamente informações disponibilizadas eletronicamente. E
ainda a familiaridade com as “normas” que regem a comunicação com outras
pessoas através do computador – CMC, entre outras coisas. (BUZZATO, 2006, p. 25
Ibidem, p. 51).
Deste
modo, ao ler, principalmente o texto literário, em sua tecetura rica, complexa
e infinita de saberes e sabores, o ser humano é transfigurado em sua
existência, passa por alumbramentos, reflexões e é esteticamente, via a catarse
aristotélica, elevado a uma potência identitária e atemporal. No poema “Cântico
Dual”, do poeta pernambucano Audálio Alves, o exercício filosófico do eu
lírico, ao anunciar a sublimação da vida diante da morte do ser, na dialética
com o Ser maior, via palavras incandescentes e poéticas:
De Deus a mim,
nenhum segredo cabe:
Vivemos sempre a sós,
os dois, perenemente; o pouco que
aprendi
(da morte)
Deus o sabe.
O que meus dedos tocam,
agora, Deus o sente:
Silêncio algum separa
meu canto de seu canto
que o sol nos une e abre visão de
outra visão.
A cor de minhas vestes
mudamos,
Deus o sabe:
A vida se consente em Nós,
presentemente,
e sendo a morte o fim
em minhas mãos não cabe.
(ALVES, 2013, p. 212)
Excelente texto. Parabéns DCP por esta postagem valiosa!
ResponderExcluirAgradecemos o seu comentário. Compartilhe e volte sempre!
ExcluirGrato nobre Natanael por compartilhar conosco este espaço de Cultura, Arte e Educação.
ResponderExcluirUma honra para todos nós sua contribuição. Espaço aberto, sempre!
ExcluirO professor deve ter a expertise para trabalhar o letramento literário, observando as competências e habilidades que o Currículo apontam, de modo a enveredar com os estudantes no incomensurável mundo da arte, nesse instigante axioma de que seria a arte que imita a vida ou a vida que imita a arte? Parabéns, Neilton, pela profícua discussão aqui proposta.
ResponderExcluirObg, querida. Aprendendo sempre. Grato pelas palavras.
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