JUAREIZ CORREYA: PRAÇA DA LUZ, 1710, EM PEQUENAS HISTÓRIAS DE ATLÂNTICA
Postado por DCP, em 17|07|2022
Era
a casa. O endereço sem erro. O ponto certo. Um verdadeiro porto, se o Una
passasse mais perto.
Segundo
o Poeta, meu amigo, para Dona Carminha lá era o mundo. E, para Mestre Biu, o
lugar onde ele vivia com a mulher, filhos, filhas e netos, contando dava doze,
todos vivendo num canto onde caberia apenas um casal. Mas todos estudaram,
cresceram, trabalharam e se fizeram para o mundo vivendo lá. Era o lugar de
Mestre Biu, pai, avô, irmão; e o mundo de Dona Carminha, mãe, avó, amiga,
fraterna e acolhedora no seu jeito de ser meio crítica, apelidadora e
desbocada.
Haviam
comprado a casa, com uma parte do dinheiro ganho na Loteria Estadual, mais por
causa de Dona Carminha, que sonhava em morar ali, do que por decisão dele.
Mestre
Biu moraria em qualquer lugar, como sempre fizera, indiferente a luxo ou
ostentação (embora a casa não fosse nenhum brinco ou palacete). Não era
mesquinho, avarento. Na verdade, nunca teve dinheiro que desse mais que o
de-comer com a profissão de alfaiate – e ele era um dos melhores alfaiates da
nossa região açucareira, era mesmo um Mestre – grande parte da vida empregado
na Alfaiataria Santos. Era pobre e modesto na sua vida madura já carregada de
filhos. Mas, despojado e inteiro no seu viver, com alma de boêmio e de artista.
Talvez tenha sido ele a primeira grande influência na formação do Poeta.
Dona
Carminha queria a casa 1710 da Praça da Luz desde os tempos em que morava numa
rua próxima, a Rua da Aurora, e visitava os pais e a irmã mais velha, dona
Neném, moradores de uma das casas vizinhas. O sonho de Dona Carminha se
concretizou no mês de dezembro do ano mais difícil de suas vidas. A casa foi
comprada, mobiliada, devidamente ocupada, mas a maior parte do dinheiro ganho
na Loteria Estadual foi jogada fora, ou melhor, esse dinheiro todo foi jogado e
gastado, como ela dizia, dentro do meretrício do Alto do Lenhador.
Mestre
Biu, meio rico de um dia para o outro, e generoso, e sem maldade, apenas com a
sua alma de boêmio querendo viver bem a vida, dava farras de fechar cabaré no
Alto do Lenhador, já cercado de falsos amigos e aproveitadores. E as mulheres,
que nenhuma era inocente: na zona as putas eram espertas e safadas e sabiam
depenar qualquer um, sabiam ser usadas e usar qualquer homem. Mestre Biu não
escapou. E quando o dinheiro acabou elas e os aproveitadores desapareceram. Ele
voltou para o dia-a-dia da Praça da Luz. Sem romantismo e sem boemia. Tão pobre
quanto antes.
Pelo
menos o sonho de Dona Carminha conservou alguma coisa daquele dinheiro que voou
rápido.
Conheci
os dois por causa da minha aproximação e amizade com o Poeta que, ainda jovem,
já era uma figura notável em Atlântica, fazendo um trabalho cultural que
ninguém fazia em toda a Mata Sul pernambucana. Aliás, assim que ele começou
esse trabalho, o jornalista e escritor Mauro Mota, famoso no Recife, publicou
uma crônica, no Diário de Pernambuco, afirmando que ele desenvolvia “uma ação
viva, orientada para a validez da literatura em toda uma área de Pernambuco.”
Essa
era uma área de interesse do meu trabalho, no Teatro, e eu e um grupo de amigos
nos aproximamos dele. Na verdade, essa aproximação ocorreu mais por interesse
do Poeta, que sonhava com a criação da Casa da Cultura de Atlântica, onde ele
queria reunir e incentivar todo mundo de teatro, das artes plásticas, do
artesanato e da música. Da Literatura então nem se fala, que ele vivia pra cima
e pra baixo proclamando o valor de Atlântica como “terra dos poetas”, até
reunir em livro - Poetas de Atlântica - os que tinham produzido poesia na
cidade, desde o começo do Século 20 até este ano de 1987, proclamando pelos
quatro cantos da cidade a importância de Ascenso Ferreira e Hermilo Borba
Filho, dois filhos conhecidos e admirados em vários estados brasileiros e pouco
valorizados e quase esquecidos na cidade. Ele dizia abertamente que Ascenso e
Hermilo eram dois pilares da moderna literatura brasileira. E até hoje não
apareceu um professor para desmenti-lo. Tanto era envolvido e identificado com
esses dois nomes que Dona Carminha, a mãe do Poeta, sem entender o significado
de nada daquilo, dizia, com a sua língua afiada e ferina, quando via o Poeta
chegar à Praça da Luz, com livros, amigos e conhecidos:
-
Lá vem o meu filho agarrado com aqueles dois velhos dele !
Tinha
uma ponta de ciúme nisso também. Mas Dona Carminha era analfabeta de pai e mãe,
mal sabia assinar o nome. Ela entendia lá o que diabo era aquilo que ele
fazia... Sabia que era uma coisa boa, ele não lhe dava aperreio. Não andava
metido com drogas, não era desonesto ou ladrão, e até pessoas de bem da cidade
procuravam por ele e o respeitavam.
Mas
aquilo que ele fazia não era tão simples assim. Ela não entendia, não tinha
cabeça pra isso não. E da vez que ele foi preso, então, por causa de umas
coisas que tinha escrito, no dia em que tinha completado 18 anos, preso em
Atlântica e levado para o Recife, ela não sabia mesmo onde botar a cabeça. Pareceu
que ia estourar. Mas entendeu, quando ele chegou em casa dois dias depois,
livre e solto sem culpa nenhuma no cartório, que ele não era um criminoso, um
marginal ou um bandido.
Às
vezes chamavam o Poeta de doido. Uma mulher chegou a comentar, numa casa
vizinha, ali na Praça da Luz, perto dela, ao ver o Poeta sozinho, num banco da
praça, como se estivesse pensando ou aluado:
-
Coitado daquele rapaz.... Tão moço, de boa aparência, e doido !
Dona
Carminha retrucou sem pestanejar:
-
Ele é doido? Já jogou pedra na senhora? A senhora já viu ele comer merda ou
rasgar dinheiro?
-
Não, dona Carminha, por que a senhora está abusada?
-
Porque ele é meu filho e ele nunca fez isso na minha frente!
A
mulher calou-se e sumiu da vista dela para sempre.
Nunca
vi um sujeito tão apaixonado por homens como o Poeta. Eram quatro os homens de
sua paixão: Ascenso, Hermilo, La Greca e Darel. Era pura admiração e respeito
pelo que eles representavam, não somente para Atlântica. Depois ainda apareceu
abrindo os nossos olhos para um tal de Tunga, que vivia pelo Rio, São Paulo e
Nova Iorque. Os homens da vida dele não tinham nada com relação a pederastia,
longe disso, que o Poeta era macho pra buceta. Filho de Mestre Biu, um homem
que comeu todas as mulheres da zona do Alto do Lenhador, quando ganhou dinheiro
na Loteria Estadual, e ainda mandou buscar “outras raparigas”, como dizia com
desprezo Dona Carminha, de Xexéu, Água Preta, Joaquim Nabuco e Catende.
O
Poeta gostava de mulheres naturalmente, com a sua poesia amorosa e a que ele
chamava de lírica social, quando escrevia sobre Atlântica, o Recife, São Paulo
e a América. De vez em quando aparecia na cidade com uma mulher diferente. Até
uma alemã, que era na verdade uma húngara, foi amigada com o Poeta. Uma mulher
bonita da porra! Parecia Vera Fisher.
Filho
de Mestre Biu, estava no sangue. Mestre Biu, para minha surpresa, quando se
falava em mulher não dava a menor opinião. Falante do jeito que ele era (o
Poeta dizia que se ele tivesse estudado seria um advogado, tribuno, político de
primeira), manifestava sua opinião sobre tudo e não perdia uma discussão, e
ninguém que frequentava a casa deles se metia a levar adiante uma discussão com
Mestre Biu. Mas, em matéria de mulher, nada; quando muito sorria de leve sobre
o assunto. O homem parecia que tinha ensinado mineiro a viver.
A
casa deles, na Praça da Luz, vivia sempre de portas abertas, tanto era o
entra-e-sai sem parar. Era um vaivém interminável dos filhos, netos, amigos dos
filhos e dos netos, vizinhos, parentes, aderentes, fregueses de Mestre Biu que
já costurava em casa, até político – de lá partiu a campanha mais original de
um vereador eleito no Brasil, um amigo do Poeta conhecido como Preta.
Eu
nunca perdi o rumo do endereço da casa deles, durante a minha vida em
Atlântica. Comecei a frequentar “a 1710” ainda rapazote, nos meus tempos do
ginasial, quando conheci o Poeta, e atravessei o tempo dos meus 40 anos indo
lá, sempre. Quando eu chegava, Dona Carminha já dizia, de longe, com o seu jeito
crítico implacável, e dizia para quem quisesse ouvir, no pequeno terraço da
casa:
-
Lá vem aquele Boca-de-Jaguara!
Botava
apelido em qualquer um, aquela matutinha do Sítio Abreu. Como eu nunca fui de
cerimônia em lugar nenhum, e Mestre Biu, o Poeta e as irmãs dele me recebiam
com cordialidade natural, ela sorria tímida, no seu canto, e me acolhia como
alguém de casa. E era assim que eu me sentia, em casa, tantas vezes comi e bebi
lá, uma casa de pobres – eles eram pobres sim, sem posse nenhuma mesmo – mas eu
nunca vi em casa nenhuma uma mesa tão generosa quanto a deles. Nem ninguém que
teve a oportunidade de frequentar aquela casa. Parecia mais um pedaço de
verdade bíblica: quanto mais eles davam mais tinham pra dar.
Soube,
tempos depois, em conversa com o Poeta: Mestre Biu e Dona Carminha não viviam
bem, há anos. Era um casal separado, como dois estranhos morando juntos mas sem
deixar de conviver. E de manter unidos os filhos e depois os netos. Mesmo com
discussões e brigas, que eram inevitáveis. Mas, nenhum deles deixava a casa
1710, da Praça da Luz. Mestre Biu e Dona Carminha eram um permanente elo de
suas vidas. Até que um dia, gritando como uma fera que não se deixa abater, na
cama, imobilizado que estava há sete anos, para não ir embora, para não morrer,
tanto ainda queria viver, Mestre Biu morreu... E dona Carminha, seis meses
depois morreu também - ela era ele, ele era ela, não tinha mais sentido mesmo a
vida na Terra -, e os filhos começaram a se distanciar, cada um para o seu
lugar, com os seus filhos e compromissos, e a casa começou a se desfazer. De
fato se desfez, não é mais residência, e sim uma casa comercial, totalmente
mudada, desfigurada, desumanizada.
O
Poeta está longe, em São Paulo, e me diz, todas as vezes em que a gente se
comunica, que não sabe mais o que é Atlântica. De vez em quando chega a ver o
nome quando abre um mapa e Pernambuco lhe aparece. Diz que, se tiver alguma
fortuna para receber em Atlântica, manda procuração em meu nome. Eu mesmo, quando
visito a cidade, não consigo mais sequer passar por perto da Praça da Luz.
*Extraído
de Ebooks Panamerica/Panamérica Nordestal Editora: www.ebookspanamerica.net.br
*Juareiz
Correya é poeta, contista e editor pernambucano
Viva a Poesia, alimento da vida, da Alma!
ResponderExcluirvaleu amigo!
ExcluirParabéns, Juareiz Correya! Conto digno de Hermilo Borba Filho.
ResponderExcluirGrande Urariano. Juareiz deve está muito feliz. Gratidão
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