JOÃO NUNO AZAMBUJA: O PÁSSARO MORTO

 

Postado por DCP, em 17|07|2022







Reproduções de Belas Artes|pássaro morto, 1933, por Arthur Segal|
WahooArt.com 








Hoje vi um pássaro morto no chão. Era uma cria, talvez recém-nascida. Sim, notava-se que era recém-nascida. Claro que era recém-nascida. Da espécie não sei dizer, sei que era um ser não vivo, um ser que foi vivo durante tão pouco tempo que nem tempo teve de ver a luz do dia. Aquela visão impressionou-me, porque a vida não tem compaixão alguma, só tem ganas: gera e mata com a mesma facilidade. Deus dá, Deus tira. É tão poderosa a vida! Será que tem consciência de que toda e qualquer morte prepara um caminho? É como uma explosão, uma orgia, um massacre, um incêndio: a cinza há de produzir um germe, ou mil. Dali nasceu um trilho novo que eu não sei aonde irá ter, nem eu nem ninguém, mas esse trilho não terá fim.

 

O pássaro que eu vi, uma cria minúscula na beira da estrada, estava ressequido. Tinha os olhos fechados e o bico aberto, escancarado. A imagem é a sede de viver. Não viu nada ainda o pássaro do que é existir, mas já está sôfrego de existência, a aspirar o hausto que faz o ser. Que vontade será aquela? Os olhos grandes, enormes para a cabeça desproporcional em relação ao corpito, o bico delineado de amarelo, tão aberto, tão faminto, são a fome que nós sentimos todos os dias. É a fome que eu sinto ao acordar, só pode ser isso. O que terá sentido esta criatura no pouco tempo que transcorreu entre a eclosão e a morte? Sons, cheiros, ânsias, uma vontade gigante, uma avidez de transpor, um toque, calor, frio, até à insensibilidade. Horas, talvez, ou nem tanto; mas foi uma vida: nasceu, viveu e morreu. Nunca ninguém saberá dela e nunca ela soube de ninguém, mas foi uma vida. Nenhuma vida passa despercebida.

 

 

 

 

 

 


 

*João Nuno Azambuja nasceu em Braga, Portugal, e é licenciado em História e Ciências Sociais. Militou nas tropas paraquedistas após um período como professor de História. Regressado à vida civil, dedicou-se à escrita e fundou, em Braga, um bar de inspiração celta. O seu primeiro romance, “Era uma vez um homem”, ganhou o Prémio Literário UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) em 2016. Em 2018 publicou “Os Provocadores de Naufrágios”, e em 2019 saiu o romance “Autópsia”. “Era uma vez um homem” foi levado ao teatro e reeditado em 2021.



JOÃO NUNO AZAMBUJA: O PÁSSARO MORTO JOÃO NUNO AZAMBUJA: O PÁSSARO MORTO Reviewed by Natanael Lima Jr on 23:29 Rating: 5

Um comentário

  1. Gostei muito de conhecer este autor português. Belo texto. Parabéns ao autor e ao DCP.

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