JOÃO NUNO AZAMBUJA: O PÁSSARO MORTO
Postado por DCP, em
17|07|2022
Hoje vi um
pássaro morto no chão. Era uma cria, talvez recém-nascida. Sim, notava-se que
era recém-nascida. Claro que era recém-nascida. Da espécie não sei dizer, sei
que era um ser não vivo, um ser que foi vivo durante tão pouco tempo que nem
tempo teve de ver a luz do dia. Aquela visão impressionou-me, porque a vida não
tem compaixão alguma, só tem ganas: gera e mata com a mesma facilidade. Deus
dá, Deus tira. É tão poderosa a vida! Será que tem consciência de que toda e
qualquer morte prepara um caminho? É como uma explosão, uma orgia, um massacre,
um incêndio: a cinza há de produzir um germe, ou mil. Dali nasceu um trilho
novo que eu não sei aonde irá ter, nem eu nem ninguém, mas esse trilho não terá
fim.
O pássaro que
eu vi, uma cria minúscula na beira da estrada, estava ressequido. Tinha os
olhos fechados e o bico aberto, escancarado. A imagem é a sede de viver. Não
viu nada ainda o pássaro do que é existir, mas já está sôfrego de existência, a
aspirar o hausto que faz o ser. Que vontade será aquela? Os olhos grandes,
enormes para a cabeça desproporcional em relação ao corpito, o bico delineado
de amarelo, tão aberto, tão faminto, são a fome que nós sentimos todos os dias.
É a fome que eu sinto ao acordar, só pode ser isso. O que terá sentido esta
criatura no pouco tempo que transcorreu entre a eclosão e a morte? Sons,
cheiros, ânsias, uma vontade gigante, uma avidez de transpor, um toque, calor,
frio, até à insensibilidade. Horas, talvez, ou nem tanto; mas foi uma vida:
nasceu, viveu e morreu. Nunca ninguém saberá dela e nunca ela soube de ninguém,
mas foi uma vida. Nenhuma vida passa despercebida.
*João
Nuno Azambuja nasceu em Braga, Portugal, e é
licenciado em História e Ciências Sociais. Militou nas tropas paraquedistas
após um período como professor de História. Regressado à vida civil, dedicou-se
à escrita e fundou, em Braga, um bar de inspiração celta. O seu primeiro
romance, “Era uma vez um homem”, ganhou o Prémio Literário UCCLA
(União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) em 2016. Em 2018 publicou “Os
Provocadores de Naufrágios”, e em 2019 saiu o romance “Autópsia”. “Era
uma vez um homem” foi levado ao teatro e reeditado em 2021.
Gostei muito de conhecer este autor português. Belo texto. Parabéns ao autor e ao DCP.
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