VALMIR JORDÃO, POEMA VIVO*
Postado por DCP, em 13/03/22
Por Urariano Mota*
“Tropecei, caí na rua,
ao tentar pegar,
com as mãos, a lua”.
(Haicai do poeta
Valmir)
O poeta Valmir
Jordão sempre surpreende. De repente, ele pode aparecer com a cabeça rapada, de
chapéu e óculos escuros e não será bem uma nova performance. Será um novo
personagem, um heterônimo vivo, porque não quer ser um poeta morto. E mostrará,
como explicação, seis marcas de bala no corpo, nada fictícias, lembranças de um
antigo atentado, de sua luta pela cidadania. Em outra oportunidade, chegará
zen, calmo, como um ser surgido na fumaça do Recife. Em uma terceira
oportunidade estará deprimido, amargo. E a causa da tristeza não será bem
filosófica, mas a nada poética razão de não ter onde morar. Que não assobia
como um samba de Caymmi.
Onde mora? Como
vive? Não lhe façam perguntas assim, objetivas, necessárias, porque ele
responderá, de passagem e de raspão, que mora aqui, ali, mas que no momento
está de volta à casa de sua mãe, no grande Recife, lá em Jaboatão. O bom filho,
quando pronto, retorna. Mas do quê mesmo o poeta vive? Valmir bem sabe o
absurdo que é responder, “vivo de poesia”. Por isso, quando cercado, responde:
— Faço oficinas de literatura, como agora.
— Mas você não tem
isso os 12 meses do ano. Nem tem décimo terceiro, nem férias.
— Não, não. Eu sou
muito cigarra, mas tenho um lado formiga também. Eu guardo um pouquinho. Canto,
e deposito uma parte desse canto, um terço. E me mantenho com o restante.
Há quem o chame de
poeta marginal. Mas este homem, que olho agora, é autor de um poema que hoje
corre mundo, tão antológico que virou quase domínio público:
“Coca para os
ricos
Cola para os
pobres
Coca-Cola é isso
aí”.
É autor, também,
além dos magníficos versos lá em cima, que tão eloquente falam do seu modo de
ser e estar em um haicai, de poemas que falam não dos marginalizados, mas como
um próprio marginalizado, de consciência poética. Como este aqui, por exemplo:
AH, RECIFE
Dizem os bardos que uma cidade
é feita
de homens,
com várias mãos
e
o sentimento do mundo.
Assim Recife nasceu no cais
de um azul marinho e
celestial,
onde suas artérias evocam:
Aurora, Saudade, Concórdia,
Soledade,
União, Prazeres, Alegria e
Glória.
Mas nos deixa no chão,
atolados na lama
de sua indiferença aluviônica:
a ver navios com suas hordas
invasoras
e o Atlântico
como possibilidade
de saída...
“Esse tipo de
poesia a geração de 1965 não fazia”, esclarece Lara, um poeta e crítico do
grupo. “Porque a gente ligou para o visceral, e o engajado da esquerda, mas não
com panfletarismo, não calcado na ortodoxia marxista. A gente se propunha a ir
além da ortodoxia marxista. Tinha anarquista, tinha... esse lado visceral muito
forte, de expor as tripas da realidade concreta, de fazer o combate ideológico,
anticapitalista”.
Pode-se dizer que
Valmir Jordão vem de uma geração de poetas urbanos, radicais no seu fazer
poético, que fazem da poesia morte, vida e profissão. Mas sem ideias orgânicas
de um movimento. Características comuns de vida têm, é certo. A maioria é de
origem pobre, todos autodidatas. (Mas afinal em que escola os escritores no
mundo se formam?) São, por baixo, mais de 50 poetas, que se apresentam em
palcos, em shows, em recitais. Os seus poemas estão em edições pequenas, de
tiragens pequenas, de circulação pequena, de preço pequeno. Diferente dos
grandes, eles são todos filhos de má família, um eufemismo que apenas quer
dizer, como Valmir disse em MATER:
“Não culpe as
putas
pelo comportamento
nefasto dos
filhos”.
Chega a ser de uma
grande brutalidade essa poética. Em 2007, no intervalo de poucos meses
faleceram dois poetas-símbolo do grupo, Chico Espinhara e Erickson Luna. O
intervalo dos seus óbitos foi curto e eloquente. Chico, em fevereiro de 2007,
Erickson em abril de 2007. Dois meses entre um e outro. De males diferentes,
mas de gênese única. Ambos poetas cujo estilo de vida, de aparência romântica,
foi antes uma autodestruição pelo álcool e por outras drogas que não atingiram
o veneno da legalidade. No começo de outubro do mesmo ano, faleceu o terceiro,
o poeta França.
Acontecimentos
assim não abalam, no sentido de que venha a desistir da poesia, o poeta Valmir
Jordão. Pelo contrário, o que mais me surpreende, desta vez, é a crença
absoluta que ele possui nos frutos e destino da literatura. Apesar de todas as
adversidades. Como aqui, neste trecho:
“Eu não faço livro
só pra vender. É o seguinte: a literatura pra mim é um caminho. Não é um fim de
ganhar dinheiro, sabe? Nem meio de ganhar dinheiro. Pra mim ela é um
instrumento de trabalho, que eu adoro fazer, que eu amo fazer. Agora, essa
história do toma lá, dá cá, existe, sim, porque você recebe muito carinho,
muita gentileza, e um livro não paga uma gentileza. Nem há dinheiro que pague
uma gentileza, entendeu?”.
Que força
penitente é essa? Entendam melhor o que isso significa: escrever poemas em
caderno, à mão, porque não tem micro, ainda que alegue ser melhor assim, porque
sua memória é tátil. Depois, copiá-los em um CD, em uma Lan House, para levar a
uma gráfica. E finalmente vendê-los ao mundo na própria voz e na página
impressa. Uma poesia, enfim, que vem ao mundo nas piores condições materiais,
ou como ele diz, “materialmente, nada próprio”.
O poeta agora tem
50 anos. Apesar da estatura, um pouco abaixo da média, apesar da falta de armas
físicas, é um homem de absoluta coragem artística. Quem o vê assim, não imagina
uma conversa que teve com um criminoso. Ele havia emprestado 50 reais ao
delinquente, e ao cobrar o pagamento da dívida, recebeu a resposta:
— Não enche o saco, cara!
Ao que ele, Valmir
Jordão, esse homenzinho convicto da sua singular diferença, respondeu:
— Escuta aqui. Tu
tás pensando que só porque tu és bandido, eu tenho medo, é? Eu sou artista,
cara. Eu sou poeta, cara, tás entendendo?
No enterro de
França, enquanto outros choravam, Valmir se acercou do caixão e, de frente para
o poeta negro, fez um recital. Somente para França. Em voz alta, como se
conversasse na melhor língua que sabe fazer, poesia. Um monólogo cuja força era
um diálogo, possível, impossível, real e imaginário. Ali o poeta falou para França da radical
opção de suas vidas, na certeza de que razões de viver também são razões de
morrer.
Um homem assim tem
que ser respeitado. É uma luz, ainda que se apresente sem grana, sem dinheiro
às vezes nem para o ônibus. Mesmo que tenhamos medo do que venha a falar de
nós, quando dele nos separarmos:
METAFÍSICO
Na saída dum
chato,
é que percebe-se
a presença de
espírito.
*Publicado no Dicionário
Amoroso do Recife
*Urariano Mota é jornalista e escritor
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