O OSSO (Conto) de HERMILO BORBA FILHO
Postado por DCP, em 13/03/22
Nos aromas dos guisados e dos
assados do boteco de Guará abancou-se Lonico-Soldador, apelido vindo da
profissão; abancou-se na massa das gaitadas e do ruído de copos, garrafas e talheres; na
fumaça e no cheiro da cerveja abancou-se, bateu palmas e esperou, abancado; e não teve que esperar muito para
tragar o cálice d’Ela, engolindo o cuspe grosso e batendo com exagero na caixa dos peitos, a mão espalmada. Sem demora, Franguinha, a copeira,
chegou com a sopa fumegante, rica, grossa, a gordura boiando, a verdura
colorindo, o osso apontando, o osso da sustança já sem tutano, derretido. Lonico-Soldador sorveu as primeiras
colheradas com os olhos rasos d’água de
satisfação, parou para respirar, o suor correndo pela testa vermelha,
com a ponta dos dedos apanhou o osso,
ergueu-o à altura dos olhos, viu-o: era
um osso amarelado com uma dobradura para o canto direito se virado para a
direita; a dobradura indo para a esquerda se virado para a esquerda; viu-o,
largou-o na sopa, não boiou mais, foi ficando cada vez mais só no prato; já não
havia mais sopa, ficou
só; e levado em pouco por
Franguinha, chegando o prato do chambaril-se-não-suar-não-paga com
pimenta malagueta e mais Ela e nesse mundo mergulhou Lonico-Soldador.
Na mesma comida de todos os dias, três dias depois Lonico-Soldador na
sopa viu o osso: reconheceu-o, não podia se enganar; e sem ninguém lhe prestar
atenção puxou o canivete e gravou na lasca do
osso um VV que para ele significava vai-e-volta; e
comeu tudo sem a menor indisposição, até
achando graça na picardia de Guará, sem o osso rico dando uma de guaxumé na sopa sem guaxumé; e nos dias que se seguiram
tratou de prestar atenção à sopa dos outros e foi vendo o osso de prato
em prato, ora nesse ora naquele: chegava
a se levantar da sua mesa, ia lá, agarrava o osso, via o VV, ria e voltava.
De casa em casa, nas lides do ofício, soldando panelas, frigideiras,
papeiros, tachos, Lonico-Soldador, nos almoços de cozinha, quebra da paga, foi
acompanhando a vida do osso: tanto podia vir na sopa como no chambaril como no
cozido como na mão-de-vaca; viu o osso na cozinha do prefeito, na do juiz, na
do médico, na do promotor, na do tabelião, voltou a vê-lo no boteco do Guará e
viu-o na cozinha do padre num dia, na do pastor protestante no outro, vez por
outra de novo em Guará, certa vez em casa de um seleiro que morava na Rua da
Ponte, outra na de um ferroviário, o osso sempre mas amarelado sem
guaxumé, fingindo de rico sem mais sustança.
Indo soldar o cano de um quintal viu-o no reco-reco da roedura de um
perdigueiro, deu-o por perdido, mas no dia seguinte lá estava na rica e linda
sopa do mais abastado comerciante de secos-e-molhados da cidade, boiando,
resplandecente, o VV cada vez mais cavado; e até o fim da
sua vida, que foi longa, Lonico-Soldador conviveu com o osso, vez por outra falando com o osso quando não havia ninguém por perto, não com
medo do escândalo, mas com medo de que descobrissem o seu segredo com o osso.
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Transcrito do livro AS MENINAS DO SOBRADO – Editora Globo, Porto Alegre, RS, 1976 (edição póstuma, lançada, nesse mesmo ano, poucos meses depois da sua morte)
*HERMILO BORBA
(DE CARVALHO) FILHO nasceu no
Engenho Verde, município de Palmares – PE, no dia 8 de julho/1917. Era
essencialmente um prosador: dramaturgo, contista, ensaísta, novelista,
romancista, jornalista, cronista, muito produziu e publicou nesses gêneros. São
mais de 15 títulos publicados nacionalmente. Tem livros traduzidos na França e
na Argentina. Publicou os livros de contos O general está pintando (1973
), Sete dias a cavalo (1975) e As meninas do sobrado (edição
póstuma,1976), no ano do seu
falecimento. Esta trilogia – CONTOS - foi republicada, em um único
volume, pela CEPE- Companhia Editora de Pernambuco (Recife, 2017), em homenagem
ao seu centenário de nascimento.
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