CINCO POEMAS DE MENOTTI DEL PICCHIA
Postado por DCP em 20/02/2022
[Curadoria de Natanael Lima Jr.]
A Semana de Arte de 1922 tornou-se um marco da modernidade do país no início do século 20, com
uma influência que transformaria diferentes campos, assim como permeou
movimentos de contracultura, como a Tropicália
e outros.
Paulo Menotti Del Picchia (1892 - 1988) nasceu em São Paulo, em 20 de março de 1892. Filho do jornalista Luigi Del Picchia e de Corina Del Corso, imigrantes italianos. Foi poeta, romancista, ensaísta, cronista, jornalista, advogado e político. Foi um influente ativista do movimento modernista no país. Sua obra mais importante é Juca Mulato (poema, 1917), que tem como referência o caboclo, traço marcante do Pré-Modernismo.
Menotti faleceu em São Paulo, no dia 23 de agosto de 1988, aos 96 anos.
CINCO POEMAS DE MENOTTI
DEL PICCHIA
O VOO
Goza a euforia do voo do anjo perdido em ti
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento
desabam no abismo.
que sabes tu do fim...
Se temes que teu mistério seja uma noite,
enche-o de estrelas
conserva a ilusão de que teu voo te leva sempre para mais alto
no deslumbramento da ascensão
se pressentires que amanhã estarás mudo, esgota como
um pássaro as canções que tens na garganta
canta, canta para conservar a ilusão de festa e de vitória
talvez as canções adormeçam as feras que esperam
devorar o pássaro
desde que nasceste não és mais que um voo no tempo
rumo ao céu?
que importa a rota
voa e canta enquanto resistirem as asas.
A VOZ DAS COISAS
E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:
"Queres tu nos deixar, filho desnaturado?"
E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu que fizeram teu berço?"
E a torrente que ia rolar para o abismo:
"Juca, fui eu quem deu a água do teu batismo".
Uma estrela, a fulgir, disse da etérea altura:
"Fui eu que iluminei a tua choça escura
no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.
E teu pai te abraçou chorando de contente...
— Será doutor! — a mãe disse, e teu pai, sensato:
— Nosso filho será um caboclo do mato,
forte como a peroba e livre como o vento! —
Desde então foste nosso e, desde esse momento, nós
te amamos, seguindo o teu incerto trilho,
com carinhos de mãe que defende seu filho!"
Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,
pareciam querer apertá-lo entre os braços:
"Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,
o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,
o varejão do barco e essa lenha sequinha
que de noite estalou no fogo da cozinha?
Depois, homem já feito, a tua mão ansiada
não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada?"
"Não vás" — lhe disse o azul. "Os meus astros ideais
num forasteiro céu tu nunca os verás mais.
Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradas
hão de relampejar como pontas de espadas.
Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo,
irão te procurar com seus olhos de fogo...
Calcula, agora, a dor destas pobres estrelas
correndo atrás de quem anda fugindo delas..."
Juca olhou para a terra e a terra muda e fria
pela voz do silêncio ela também dizia:
"Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo...
Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.
Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esfera
há uma cova que se abre, há meu ventre que espera...
Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,
e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.
Por isso o que vale ir fugitivo e a esmo
buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo?
Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento...
Só por meio da dor se alcança o esquecimento.
Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal, a própria dor dói menos...
E fica, que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão em que a gente nasceu!"
*Publicado no livro Juca Mulato (1917).
NOITE
As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.
Todos os rumores são postos em surdina,
todas as luzes se apagam.
Há um grande aparato de câmara funerária
na paisagem do mundo.
Os homens ficam rígidos,
tomam a posição horizontal
e ensaiam o próprio cadáver.
Cada leito é a maquete de um túmulo.
Cada sono em ensaio de morte.
No cemitério da treva
tudo morre provisoriamente.
BANZO
E por que deixou na areia do Congo
a aldeia de palmas;
e porque seus ídolos negros
não fazem mais feitiços;
e porque o homem branco o enganou com missangas
e atulhou o porão do navio negreiro
com seu desespero covarde;
e porque não vê mais de ânfora ao ombro
a imagem do conga nas águas do Kuango,
ele fica na porta da senzala
de mão no queixo e cachimbo na boca,
varado de angústia,
olhando o horizonte,
calado, dormente,
pensando,
sofrendo,
chorando.
morrendo.
CHUVA DE PEDRA
O granizo salpica o chão como se as mãos das nuvens
quebrassem com estrondo um pedaço de gelo
para a salada de frutas do pomares…
O cafezal, numa carreira alucinada,
grimpa as lombas de ocre
apedrejada matilha de cães verdes…
fremem, gotejam eriçadas suas copas
como pêlos de um animal todo molhado.
O céu é uma pedreira cor de zinco
onde estoura dinamite dos coriscos.
Rola de fraga em fraga a lasca retumbante
de um trovão.
Os riachos correm com seus pés invisíveis e líquidos
para o abrigo das furnas. No terreiro,
as roupas penduradas nos varais
dançam, funambulescas, com as pedradas,
numa fila macabra de enforcados!
Natanael Lima Jr. é pedagogo, poeta e editor do site ‘Domingo com Poesia’
Gostei muito de ler poemas de Menotti Del Picchia! Obrigada! Parabéns, Natanael Lima Jr. pelo site! Abraço
ResponderExcluirCeli Luz
PARABÉNS NATANAEL, esses poemas são de uma profundeza que enebria a alma da gente... são refrigérios para nossos corações. Que você possa nos presentear com tantos outros.
ResponderExcluirMuito bom ler esses poemas ! Obrigada.
ResponderExcluirLindos poemas!
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