A INCERTA REALIDADE: (CONTO) DE JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA
Postado por DCP em 20/02/2022
A
INCERTA REALIDADE (CONTO)*
José
Rodrigues de Paiva¹
Madrugada. Noite lentamente arrastada. Horas
sucessivamente tocadas pelo relógio da sala. Insônia. Virar-se e revirar-se na
cama. Insuportavelmente sufocante, o calor, deixando-lhe o corpo pegajosamente
suado. Ainda tinha nos ouvidos a angústia daquele grito... E um remorso
indizível, aquela sensação de culpa que o atormentava, sem trégua.
Aproximava-se a noite. Aquele recanto afastado da
cidade estava praticamente deserto. Ele vira apenas uma mulher sentada na
mureta à margem do rio, olhando a correnteza barrenta que arrastava detritos e
plantas aquáticas. Passou sem lhe dar importância. Alguns passos adiante o
ruído de alguma coisa caindo na água e um grito, meio sufocado de pavor,
fizeram com que ele se voltasse. Já não viu a mulher. Olhou instintivamente a
correnteza suja. Ela debatia-se na água. Subiu à mureta, junto ao rio, mas
hesitou em atirar-se e a mulher distanciava-se rapidamente. Desapareceu ao longe,
num emaranhado de plantas levadas pela correnteza. Por que não se jogara? Era
bom nadador, por que a hesitação... Olhou em torno vendo se alguém o observava.
Ninguém na rua. Começou a caminhar, apressadamente, acelerando mais e mais o
passo, acabando por correr como um desesperado que fugisse de si mesmo.
Na sala de jantar o irmão lia o jornal do dia.
Precisava contar aquilo a alguém. Era uma necessidade, tinha que desabafar. Mas
o irmão estava tão absorto na leitura... Mesmo assim arriscou:
– Uma mulher suicidou-se...
O irmão não respondeu. Continuava atento à leitura,
o jornal aberto à sua frente, escondendo-lhe o rosto. Mas o outro precisava
exteriorizar a sua angústia e tentou outra vez:
– Uma mulher suicidou-se quase agora.
O irmão, com jeito aborrecido, falou por entre os
dentes:
– Isso acontece todos os dias. E continuou a ler.
Precisava contar a alguém, alguém tinha que o
ouvir. Sabia que se sentiria melhor depois de haver contado aquilo. Não
conseguia afastar da cabeça a lembrança da mulher sendo arrastada pela
correnteza. Perguntava-se a todo instante por que não se jogara à água. Talvez
tivesse conseguido salvá-la... E procurava justificar-se: – A correnteza
arrastou-a muito depressa... Não havia condições para tentar o salvamento e ninguém
para o ajudar... Mas isso não o convencia e aquele sentimento de culpa roía-lhe
a alma.
Caminhou até à porta. Lá fora a noite cobria tudo
de negro. Precisava extravasar, falar com alguém, ouvir alguém, tirar do peito
a carga esmagadora.
Sair. Contar aquilo ao primeiro vagabundo que
encontrasse. Depois poderia voltar para casa. Andou um pouco sem encontrar
ninguém. A rua estava completamente deserta. Começou a apoderar-se dele um
grande pavor. Olhava assustado o negror acentuado das sombras das árvores, o
menor ruído sobressaltava-o. Tomado de pânico correu para casa como um louco
fugindo do invisível.
Talvez pudesse encontrar sossego no alheamento do
sono. Deitou-se, mas não conseguia dormir. Os ruídos da noite perturbavam-no. O
relógio de carrilhão batia, na sala, sucessivas horas e aquelas pancadas, aos
seus ouvidos, ressoavam lúgubres, como um som triste e distante vindo de um
outro mundo. O suor deixava-lhe o corpo pegajoso. O que teria sido feito da
mulher? Estaria morta, claro... Naquela correnteza, dificilmente escaparia. E o
remorso de nada ter feito para salvá-la queimava-o intensamente. Levantou-se
sem saber para quê, e, na escuridão, tropeçou numa cadeira que tombou,
ruidosamente. Assustou-se. Ficou paralisado no meio da casa, suspenso do próprio
medo. Voltou para a cama, tateando o vazio.
Saiu ainda com a névoa da madrugada empanando o
dia. Sentia-se melhor com a manhã. Ninguém na rua. Caminhava mecanicamente sem
saber para onde, e, sem se dar conta, encontrou-se à beira do rio, no exato local
onde vira a mulher na tarde anterior.
O sol dissipou as névoas da madrugada. O mundo
acordava. Algumas pessoas começaram a aparecer na rua, procurando os seus
destinos. Olhou o rio, agora passando devagar, a água quase limpa. A luz da
manhã feria-lhe a vista, mas uma agradável sensação de leveza e bem-estar
dava-lhe um imenso alívio. Já não sentia aquela angústia da noite anterior.
Conseguia respirar livremente, deixando-se envolver por uma tranquilidade
plena, e, diante da paz daquela manhã, lembrando-se do tormento da noite,
mentalmente se perguntava: realidade...? Pesadelo...?
Recife, dezembro de 1967
*Extraído
do livro “Como as nuvens que passam e outros contos”, Recife: Edições Dédalo,
2018.
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¹José Rodrigues de Paiva nasceu
em Coimbra, Portugal , 30 de outubro de 1945. É poeta, ensaísta e com incursões
feitas no domínio do conto. De 1978 a 2015, lecionou Literatura Portuguesa no
Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco, onde dirigiu a
Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano.
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