OS DIAS DE CHUVA SÃO OS PIORES, CONTO DE ALEXANDRE COSLEI
Postado por DCP
em 20/06/2021
Alexandre Coslei é escritor, crítico e jornalista
Foto: Reprodução
OS DIAS DE CHUVA SÃO OS
PIORES
(Conto do livro “Amor de Cinema”, por Alexandre Coslei)
Os dias de
chuva são os piores. Na juventude, em outras circunstâncias, eu gostava da
chuva, do aroma que ela fazia subir das calçadas, o cheiro de terra molhada me
trazia uma inexplicável euforia. Agora a chuva se tornou ameaça, é preciso
juntar as coisas, buscar um local seguro. Às vezes, ela chegava de súbito, mal
dava para pensar diante da torrente de água caindo do céu, formando correntezas
caudalosas, simulando o dilúvio de Noé, ansiando por lavar a cidade. Nós somos
parte da sujeira. Pensar rápido e correr. Nunca foi fácil, mas com o tempo
marquei refúgios que me deixavam em segurança enquanto durassem as tempestades.
O cotidiano nas ruas nos leva a priorizar um único instinto, a sobrevivência.
De certa forma, o corpo e a mente retroagem a um estado mais selvagem, ao mesmo
tempo que a vida é remodelada em termos primitivos.
Qualquer um
irá considerar bizarro se eu disser que esperava cair nesta situação. É
verdade, antecipei o meu próprio infortúnio e sabia quando ele começaria a se
desenhar. Morre pai, morre mãe, a família se fragmenta, o desemprego, perde-se
o pouco patrimônio, ganha-se dívidas impagáveis. Resta aquela que é o único
acolhimento possível: a rua.
Deitado sob
a marquise, primeiro vem a vergonha de ser reconhecido por alguém de outras
épocas, alguém que possa ter conquistado estabilidade, casa, família e um
trabalho seguro. Depois, a fome e a sede mostram que indignidade seria morrer
ali, como um indigente, enterrado sabe-se lá onde e como.
Descobrimos
a inevitável necessidade de defecar e urinar como animais, tento manter algum
vestígio de pudor encontrando recantos discretos. O cheiro acre do próprio
corpo, encardido e suado, incomoda a princípio. Porém, como tudo na vida, o
olfato se acostuma à derrocada. Aquela vergonha inicial, o medo de ser
identificado por um rosto familiar, desparece e se reverte na esperança de que
alguém nos reconheça, se comova e nos auxilie com generosidade.
Sei que
você deve estar estranhando a forma como me expresso, com correção formal da
língua. Deve estar se perguntando se tenho estudo e berço. Sim, acredite na sua
intuição, eu possuo estudo e berço. Não concluí a faculdade, mas a leitura foi
um hábito diário e me arrisquei como poeta nos dias de abundância. Deixei
passar boas oportunidades, não me esforcei muito, eu gostava de pulsar, de
viver. Fui a cigarra inconsequente que contemplava as formigas com desdém. O
meu destino estava traçado. Neste país, é cada vez mais fácil cair na
mendicância do que conquistar um lugar ao sol. Restaram-me as sombras mais
penosas da existência. Enquanto outros se gabavam de conquistas, títulos e viagens,
eu parecia ter traçado a minha jornada direto para o fundo do poço. E o poço
tem fundo, é a sarjeta. Símbolo dos fracassados e despossuídos. Talvez,
inconscientemente, eu houvesse planejado essa derradeira experiência pessoal.
Fui
perdendo a noção de tempo, mas creio que ultrapassei os doze meses sob o sol.
Um pigarro evoluiu para tosse crônica, um alerta sobre a erosão da minha saúde.
É surpreendente quando aceitamos o fato de que não há mais teto ou paredes nos
limitando, sente-se uma liberdade mórbida, triste e inútil. Estranho também é
observar as pessoas que passam, os olhares, a empatia, o desprezo. Certa vez,
uma jovem de alvíssima beleza parou à minha frente, abriu um sorriso largo e
puxou conversa.
— Moro aqui
perto e sou sua fã. O senhor é uma lição de vida. Está aí, passando
dificuldades e sorrindo. O senhor é um exemplo de força e esperança.
Sem saber o
que responder, sorri. Ela arregaçou com mais vontade os dentes impecavelmente
brancos, estendeu a mão, me deu uma garrafa d’água e quatro moedas de um real.
Esticou-se e beijou-me à testa suavemente. É louca, pensei. Há dessas criaturas
para quem a miséria se resume a um episódio teatral, onde encontram consolo
patológico empenhando-se em gestos insignificantes de caridade.
Catar
latinhas para trocar por mixaria, ficar com a mão estendida, esperando com
raiva e insistência o altruísmo de quaisquer olhos que me vissem. Pedir um copo
d´água no botequim, um resto de comida. Ajeitar o papelão sob o corpo,
contemplar o tédio interminável sentado sobre a calçada. Se você imagina que
toda a estrutura burguesa que o abriga é o fluxo natural do sistema, tenha
cuidado. O celular, a TV a cabo, o seu notebook, a cama macia, o
ar-condicionado, tudo isso é uma ilusória concessão para quem seguiu as regras,
aceitou a disciplina e foi beneficiado com privilégios anteriores ao próprio
nascimento.
Não sou o
primeiro caso de mendigo letrado, favorecido por educação convencional. Conheci
outros. Desde que começaram a acreditar que o Estado não deveria ser assistencialista,
as marquises se tornaram o abrigo e a sina de multidões. Não é mais possível
distinguir os que foram pobres desde sempre daqueles decaíram da classe média.
Coletivizaram a privação. Durmo pouco, sinto muito sono, fraqueza. A perna
esquerda reclama com dor contra as longas caminhadas que faço procurando o
farnel que me garanta outro dia. No passado, li que os budistas valorizam o
presente. A rua seria o paraíso dos budistas, na rua só se vive o hoje, o
agora. Durante algumas inevitáveis jornadas noturnas, eu lançava a visão para
as janelas iluminadas dos apartamentos acima de mim, me encantavam as luzes, os
vultos debruçados nos parapeitos. Por alguns segundos, eu coabitava o conforto
das residências alheias.
A mão
estendida, o sorriso que eu forçava à boca, eu sabia dos meus dentes amarelos.
Quantos dias sem banho? A chuva podia ser o alívio que me despoluía das crostas
e da poeira negra do asfalto. Oportunidade sazonal para que eu me esfregasse
com um pedaço de sabão de coco debaixo de algum pé-d’água. Mas os dias de chuva
são os piores. Recosto-me numa parede à beira da calçada, a mão estendida, o
corpo baldio, sorriso de dentes descuidados. Por quanto tempo mais conseguirei
conter o animal feroz e indomável que cresce dentro de mim? Quando a minha
passividade se converterá no motivo do seu terror? A mocinha alva e cândida
amanhece asséptica e ofuscante, entrega-me um saco de pão e uma caixa de leite,
baba a minha testa com a sinceridade do beijo repugnante.
Na abóbada
incandescente da cidade, um azul opressor espalhava-se pelo infinito. Enquanto
bebo um gole do leite e mordo um pedaço do pão, a límpida manhã se move entre o
caos de todos os que estão condenados a prosseguir.
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*Alexandre
Coslei é jornalista, editor, crítico literário e professor. Possui três livros
publicados, tem participação em diversas coletâneas de ficção, é autor de
dezenas de artigos com repercussão na mídia, foi ganhador do prêmio São João
Marcos de 2014. Um autor com apurado olhar social, deixando transparecer isso
em grande parte do conteúdo que produz.
Excelente texto, meu querido Alexandre Coslei! Foi com surpresa e grande alegria que li seu conto - especialmente falando em chuva. Por ter nascido na sertão paraibano, a chuva é um momento de imensa alegria. Parabéns! E mande-nos mais...
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