AS MÚLTIPLAS VEREDAS DE DIONE BARRÊTO
Postado por DCP em 04/04/2021
Dione
Barrêto I Foto: Reprodução
Dione
Barrêto
saiu cedo de casa. Muito cedo. 1973 tava num canto. 1977 tava em outro. 1994 a
2004 um Atlântico à vista: Portugal, Cabo Verde, Moçambique, Galícia , e outras
plagas fora do Brasil. trabalhando. 2019 outra andarilha lhe empurra para
habitar a serra da cantareira. As cidades lhe encantam com seus estranhamentos
e alguns oblíquos olhares. Escreveu uns livros. Fez uns recitais. Editou
jornais de poesia alternativa. Dirigiu instituições culturais. E por saudade de
uma outra que foi, trouxe-a de volta. Quem? Uma apaixonada por Jung, mitos,
taoismo, alquimias, iching. Desde então, faz alfaiataria e abre veredas em
almas delicadas. E como se não bastasse, escreve uns poemas e alguma prosa sem
pretensões.
CINCO POEMAS
DE DIONE BARRÊTO
CLARINS
a
partir daqui
sou
clarins
e
toco-me
sou
cabelo de fogo
pedindo
passagem ao maestro nunes
para
acender de música
uma
cidade de foliões e maracatus
eia
zé pereira!
com
trezentos tambores
meu
corpo arde sobre o marco zero
e
sob meus pés
esmago
o desgoverno
a
desfaçatez
e
a vilania
aqui
neste reino
capibaribe
é língua suja
com
que cabral, o poeta
deitou
motivos para melhor amá-lo
por
ele - o capibaribe
e
por todos
de
ribeirinhos a citadinos
e
até saltar do chão
como
quem avista a liberdade,
ajoelho-me.
meus
pés beijam a boca da cidade
e
frevo
capibaribe
meu leão de plumas coroado!
atravessas-me
da
garganta ao rés do chão
e
fervo
vem
recife
trás
a saudade
e
me pega pelo braço.
de
hoje até quarta-feira
sou
a que fugiu do calendário.
sim,
voltei recife
ouvi
teu chamado
-
além dos sussurros de luis bandeira e alceu valença
e
desta ponte onde estou
sei
que aqui finquei meus pés
onde
um galo reina para além da cidade
e
como quem um país atravessa,
eu
canto
êhhhh
madrugada
rufa
sobre mim teus tambores
já
não quero sombrinhas
nem
rodopios.
duas
réguas de chão
me
bastam
sou
este corpo só pés
e
bailo
daquela
Oh-linda ao marco zero
nao
durmo ainda
vagueio
como
um corvo de Poe
catando
latas à margem
desta
cidade
sempre
à margem
deste
país
à
margem
deliro,
talvez
e
no meu delírio
dois
mil e vinte dois acordes.
adiante,
um
galo soberbo grita e rege
mil
orquestras de anônimos
um
milhão de foliões
mãos
em punho
coro
vivo
eis
o refrão : FORA! _ _ _ _ _ _ _ _ _
agora
sim é quarta feira
já
podemos lavar a cidade
eis
que é chegado o carnaval dos carnavais!
12022021
CRISTO, DOIS
MIL ANOS DEPOIS
saí
de casa para consolar-me
cá
fora
sem
o manto da inocência
os
amigos são escassos
e
o pranto, proibido
preciso
mais que pranto
para
manter de pé a consciência
vai
longe a idade média
mas
esta, a da mídia
ainda
queima inocentes em praça pública
tirem
do gelo o meu público coração
e
queimem esta madorna
este
mundo sem teto
sem
freio
sem
mácula
e
deixem-me.
(In
antologia Retratos, a Poesia Feminina em Pernambuco. Recife: Ed. Bagaço,2004)
AO ARCANJO
DEDICADO
A Miguel, o menino
se
fosse adulto diria:
jogou-se
desesperou
mas
não
contava
nos dedos
5
aninhos
:
exatos
e
tinha no nome um miguel
desde
cedo ao arcanjo dedicado
-
temia a mãe perdê-lo?
é
costume, coisa de mãe gravidosa
diz-se
que grávida sonha e o nome vem
deus
sopra no coração da mulher
assim
.... fuuuuu. sopro, soprado
menino
assim, já vem assinado
-
duvido não
aquela,
a quem se deve esquecer o nome
conduzira
miguel ao nono andar, sozinho
para
sempre não honraria
o
nome de mãe que também recebera.
-
apartada da natureza
cascavilhara
um só destino
e
coisa de destino, deus não livra.
miguel,
filho único
chegaria
ao céu antes de ao chão cair
e
muito antes de ver a vida que jamais seria
e
já não era
ficou
no mundo, somente
aquele
mal e os aberrados
miguel,
o nascido de mangue
nem
era anjo, ainda
e
mal sabia qual menino
era
no
quanto que tinha, ensaiava ser
e
mais que isso, nem pertencia
tornava-se
como
um rio torna-se Capibaribe
e
o poeta torna-se um Cabral
mas
um menino, desavisado de si
entorna
a vida do mundo
foi
isto
daquela
proteção mais do que protegida
a
mãe já não precisava
nem
viver precisava
caiu
a mãe, antes que miguel
e
nem se pode dizer: um ícaro!
não
fascinara para o alto
buscava
o chão com nome de mãe
este
o seu amparo
e
nela o rosto do arcanjo
aos
prantos caído
de
uma dor com nome de infante
quando
uma criança morre
de
morte mortificada
que
sentido a vida assim depositada?
aquela
mulher não é a primeira: a virgem
nem
será a última: a parideira
mas
entre a mulher e o menino
há
uma morte e a cidade
lugar
em que “as árvores e as pedras são aquilo que são”*
e
onde homens e mulheres
imitando
o deus
reinventam
o mundo e lhe dão um nome
Recife
não é Zoé, a cidade indivisível de ítalo Calvino
recife
é o marco zero
a
sinagoga mais antiga das Américas
e
as torres gêmeas
as
torres em que ficaram gravados o corpo e o menino
miguel
já não é menino, nem Arcanjo
deita-se
sem
teto
sem
terra
sem
chão
e
ajunta da terra ao céu
todas
as civilizações
desde
herodes e medéia
a
distância é o mito e a memória
depois,
o mundo dá voltas
só
para ter certeza de que continuamos
ainda,
covardemente
daqui
deste mundo urgentado
os
anjos não chegam suficiente
nem
deus
mas
há notícias:
um
miguel não basta
para
desnudar todos os ausentes
e
neles olhar esta gente-coisa
que
cotidianamente nos tornamos
eis
a hora de arrancar da cara
esse
deus medroso que simbolizamos
somos
de lata
:
é tudo o que somos
sem
mais tempo
sem
mais palavra
nenhuma
nada
25092020
COM FINADOS
cem
dias
exatos
neste
quadrado que me desgoverna
conto
a passagem do tempo
enquanto
o inominável
-
aquele
acumula
desmandos
não
me assombro com os mortos
aprendi
a consumir alguma intimidade com meus medos
e
cozinho-me com eles desde a infância
bicho
papão
boi
da cara preta
e
as ziquiziras todas.
tornei-me
isto:
experimento
e desafio
com
insepultas memórias da infância
mas
ver a morte sem o registro do afeto
sem
a foto da alma no instante de dobrar-se
e
sem jamais olhar o rosto amado
justo
naquela hora última...
ahhhh…
agamenon!!!
ainda
sobre nós a maldição da casa de atreu?
-
que mal fizemos nós aos deuses todos?
consolo-me
com meus mortos queridos
empilhados
na biblioteca
e
não vou citá-los para não parecer soberba
são
só e somente minha fonte eterna de aprendizagem.
com
eles, atravesso areias movediças
e
cidades sob os escombros
ouvindo
com cuidado
palavras
de encantamento
de
um jeito que só quem avistou
para
além dos muros
sabe
do que estou falando
só neste pais paraíso e inferno habitam
parede-meia.
só neste
a
morte não é sagrada
já
não se pode ter no peito o último suspiro
nem
o rosto guardar do querido mais querido que era meu
avisto
as covas nos retratos dos jornais
enquanto
a tragédia produz arte
como
se natureza fosse
ali,
no chão batido
o
trágico mais trágico
do
divino que é a vida
no
lugar de todos os excluídos
estar
confinado é uma palavra de luxo
quase
bibelô a enfeitar o armário da sala
enquanto
eu
esta
coisa pouca
me
ocupo das noticias
medito
silêncios
e
ao pé de alguma montanha
peço aos deuses que economizem sua justiça
sobre
aqueles a quem amo
e
sobre todos os que ainda ponho em fila meu desejo de amar
29062020
IMAGINAR-SE
numa
hora fora do tempo
dessas
em que a alma acorda
e
surpreendida de si
desperta,
inventa e crê
eu...
duvido
nunca
alma
é coisa tinhosa
tem
inflexões
e
acalenta vivas umas memórias
recheadas
de vontade
própria
não
creio
mas
aprontei-me para a cena
e,
de saia rodada
ocupei
o lugar como quem sempre ali habitasse
e,
lá estando
sentei-me
a
lembrar alguém que pensa que sou
um
corpo dentro de um chopp suado
bailando-se
desfazendo-se
e
já ali
num
cantinho deserto
entre
quatro mesas vazias
um
sax alto
toca
delicadamente
os
silêncios do meu corpo
enquanto
helena
ela,
a despida de Tróia
exibe-se
nua
e
por um somente olhar
arrebata-me
não
era eu
mas
poderia
18062020
Eu sou só agradecimento a natanael e seus domingos. Beijos meu amigo
ResponderExcluirAbs e volte sempre. Espaço sempre aberto.
ExcluirQue massa!! As múltiplas veredas de Dione Barreto.
ResponderExcluirLindos versos querida Dione!! Parabéns querida!
gratissima
ExcluirSempre cirurgicamente atenta à vida, Dione consegue embalar nossas dores e medos de forma poética. Linda contribuição ao mundo, linda Dione!!
ResponderExcluirShow 👏👏👏👏👏👏💯
ResponderExcluirgrata fernando por sua amorosidade
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