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FRUIÇÃO, PARTITURA E VENTANIA: A ESTREIA POÉTICA DE DANIEL GLAYDSON RIBEIRO

 

Por Diego Mendes Sousa*

Publicado por DCP em 28/02/2021




















O livro Pulsão de língua (Mirada, 2021) versa sobre a linguagem instintiva da poesia. Daniel Glaydson Ribeiro é experiente nas letras e faz a sua estreia com um rico discurso sobre o duradouro e o fugaz, entre o chão poético dos seus espantos e o arcabouço teórico da sua vivência.


Sua consciência crítica sobre o mundo provém de uma sabedoria reproduzida em seus próprios ideais contestadores do voraz capitalismo, da crueldade da civilização e da alarmante injustiça social, pois “mortal antes de tudo é a memória”. O eu lírico se refaz após o esquecimento, “de ruínas invisíveis / que se comem”. Esquecimento ou deglutição, semiofagia?


A voz literária de Daniel Glaydson Ribeiro está à espreita de inúmeros elementos experimentais. Seu ritmo segue fragmentado como uma sangria desatada no inconsciente, que se amplia com forte vigor humanista a desaguar no abismo dos silêncios, em “mística-terra d’eternidade”.


Estudioso da poesia de Jorge de Lima, Daniel preserva em sua dicção a atmosfera sobrenatural das cousas. Guarda também a magia precisa da beleza. Emociona-me versos fantásticos como estes: “mete os dedos dentro // dos cabelos das ondas // e as unhas na nuca do mar”.

A fruição das imagens inventadas por Daniel perpassa pela sensibilidade, também por aquilo que é íntimo a um autêntico poeta: a migração sonora das metáforas e o incêndio renovador da alma encantada.


O cume da obra, a meu ver, carrega uma forte herança dos Modernistas de 22 e dos Concretistas paulistas. Com leveza e ressurreição, ecoam Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.


Há um poema de Daniel Glaydson Ribeiro cujo título me causou uma excessiva atração. Trata-se da peça “1”, da seção “Pulsão arcaica”, que esboça um relicário frasal remoto, de imensa delicadeza: “Oiço uma ventania”, que desperta sensações de origem, muito conceitual e elegante, por causa da inesperada e incomum variação da palavra “ouço”, posta com tanta precisão.


Esse poema em comento é uma obra-prima, bem escrito, inspirado, revelador, tecido por mistérios, por uma energia cabalística bucólica e chamuscado por uma imagética profunda, com evocações sedutoras para um tempo de essência, traduzido em deserto, sede, miragens, terra, areal e Deus.


“e o que sinto, se sinto

é que Deus, Deusa, se existisse, se existe,

perene, passa, sequios’ e sopra.

 

e não há nada, entre nós,

a ser dito.”


 

O jogo com o inefável é espetacular. Versos finais inebriantes, verdadeiramente indizíveis, sublimes.

 

Pulsão de língua está dividido em cinco atos que dialogam com as dores do ser. Daniel Glaydson Ribeiro reserva a alteridade como uma deliciosa característica de busca rumo ao prazer estético, mesclando os idiomas existenciais às estações oníricas da vida terrenal.

 

Sua originalidade está no salvamento da fala e no manejo extraordinário do arrebatamento ascético: “Só muito depois compreendi // que esta ventania constante // já é Tua Voz, // num simples sopro sempiterno.”.

 

Com os seus barulhos e excessos, Pulsão de língua promove o ruído das vozes que habitam as iluminações imprescindíveis da tradição e inova pela via do ressurgimento de outras veracidades, como a reconstrução do movimento anímico e a consolidação de uma linguagem singular.

 

Daniel Glaydson Ribeiro nasceu no Piauí, em 1985. Poeta, crítico literário e tradutor de Paul Valéry. Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). Pulsão de língua é o seu livro de estreia.





*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense. Advogado e Jornalista. Filho da Parnaíba.








Daniel Glaydson é poeta piauiense, critíco e tradutor de Paul Valéry

Foto: Reprodução






POEMAS DE DANIEL GLAYDSON RIBEIRO

ESCOLHIDOS POR DIEGO MENDES SOUSA

 

 

 

 

 

SILÊNCIO E VOZ

 

Eles dizem que o povo brasileiro

Não curte nem mergulha na leitura,

Não gosta do livro e su’aventura,

Não é à poesia hospitaleiro.

 

Mas eu vejo que isso não é verdade

Quando alcanço o silêncio desta aula,

Quando todo o barulho então se exala

E páginas voam: à liberdade!

 

Sim, eu vejo qu’isso não é verdade,

Pois nos olhos sagazes da menina

Se acende a narrativa e sua sina,

 

Cisma d’ainda crer na humanidade,

Vencendo todo caos e todo algoz

Quando assume a potência da sua Voz.

 

 

HAIKAI

 

O cheiro do tempo

um quintal frutificando

lentamente, dentro

 

 

ESQUIZOCAPITAL

 

Era uma vez minha terra

tinha palmeira e palmares

hoje tudo queima

e a Flor-

esta

cinza pelos ares:

 

cinza que cobre estrelas

fumaça enforca dores

ouro-lama afoga gente

num rio tóxico

Rio Doce

 

os quilombos e as aldeias

que diziam “demarcadas”

são o intermitente cenário

de guerra das bandeiradas

 

minha terra, mina

nem sei mais se é terra ou veneno

e tudo continua sendo

para o progresso

de São Paulo.

 

 

LÁGRIMA

 

o silêncio da voz que se fez lágrima

e foi

numa correnteza

 

 

COMO

 

...se ao poema coubesse ainda e apenas

lê-lo, com humana voz sem excesso

no ritmo puro do tempo disperso

como se houvessem raças e antenas,

 

numa ausência de qualquer artifício,

como se eu detrás duma cortina,

sumisse, e esta língua que imagina

já não fosse a máquina do início.

 

Tal como a luz do sol ou a da lua

as nuvens, os raios e tempestades

são sublime teatro-transcendência,

 

a Voz é meu corpo a dançar, eu nua;

língua é ruído de todas vontades,

o poema: barulho-excesso-essência.

 

 

I

 

 

Oiço uma ventania.

dentro ou num lugar não sei onde,

leva consigo algo — que não sei quê.

 

ou deixa, aceita, permanece, transcende

 

sinto esse vento de deserto,

não o calor a transbordar-me pelos poros

nem a sede a fazer-me suplicar miragens

a solidão

a fadiga

ou a perda

 

não há em meus cabelos terra

nem me seguem pegada

sou vejo estes areais a correr fino por meu corpo

 

mas oiço.

 

e o que sinto, se sinto

é que Deus, Deusa, se existisse, se existe

perene, passa, sequios’ e sopra.

 

e não há nada, entre nós,

a ser dito.







FRUIÇÃO, PARTITURA E VENTANIA: A ESTREIA POÉTICA DE DANIEL GLAYDSON RIBEIRO FRUIÇÃO, PARTITURA E VENTANIA: A ESTREIA POÉTICA DE DANIEL GLAYDSON RIBEIRO Reviewed by Natanael Lima Jr on 12:15 Rating: 5

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