FELICIDADE ÀS CEGAS: um romance de Gracia Cantanhede
Por Diego
Mendes Sousa*
Postado por DCP em 21/02/2021
Cabra-Cega (Patuá,
2021), de Gracia Cantanhede, é o
reflexo de uma dor universal perceptível à visão humana, em que a realidade de
uma nordestina brasileira é escancarada em uma narrativa em primeira pessoa,
com recortes fotográficos e cronológicos.
O título da obra foi muito bem urdido,
pois a trama anuncia dois elementos identitários transfigurados em uma
simbologia que remete imediatamente a uma brincadeira tão presente na infância,
mas que aqui (na literatura de Gracia Cantanhede) esconde uma cruel e sofrida
história de vida.
A personagem principal, Maria Divina
de Oliveira, relata as suas memórias, com a urgência ditada pela opressão do
seu massacre existencial. Ela é a cabra, uma mistura de raças, uma filha da
roça, com cabresto familiar, é uma qualquer, sem eira nem beira, a conviver com
outras cabras: pessoas de temperamento difícil e de caráter duvidoso,
ignorantes, alcoólatras e machistas.
Maria Divina, ou apenas Vina, é uma
vítima da cegueira social, da sangria desvairada das facas do tempo, cujas
lâminas não ofertam destino nem compaixão. Sua personalidade é esfaqueada pelas
circunstâncias. Sofre pelos estupros, pelos desastres no amor e pela violência
doméstica. Encara a fome, o preconceito, o nomadismo e o abismo. Sente a
tragédia, a morte de um dos filhos e a perdição das filhas.
Essa mulher, a verdadeira cabra-cega,
é o retrato da barbárie e da desesperança, da adversidade e do enfrentamento
ante a sua passividade psicológica, a viver um constante impasse entre a
covardia e a coragem de expor as suas desgraças.
Gracia Cantanhede aponta em uma das
epígrafes o pensamento de Arthur Schopenhauer: o destino baralha as cartas, e nós jogamos. Vina encontra na fé e
na arte as percepções intuitivas que amenizam o seu vagar angustiante pelo
mundo.
A felicidade às cegas, quase
clandestina e escassa, de epifania e de ascese cristã, é escrita por uma
sobrevivente, com intertextualidade, repleta de aparições culturais, a exemplo
de Cazuza, Gabriel García Márquez ou Manuel Bandeira, que impregnam o
imaginário da narradora Vina.
O livro Cabra-cega possui um estilo
fluido, atual e comunicante. Um trabalho bem lapidado, com fortes expressões de
uma sociologia interiorana, com um linguajar intransferível e geograficamente
mutável, com episódios nas Alagoas, em Sergipe, na Bahia e em São Paulo, a perpassarem
de maneira linear, dos anos de 1950 até o hodierno, quando outras ameaças à
vida se instauram. A composição é politizada e poética, denunciante e eterna em
seu embate de crueza e de beleza.
A romancista, contista e poeta Gracia
Cantanhede nasceu em Campos Gerais, no Estado de Minas Gerais. Fez carreira em
Brasília, no Distrito Federal, onde vive desde 1972. É Advogada e Procuradora
Federal aposentada. É autora dos livros Palavra
de Mulher (1994), Jogo de Persona
(1997), Mulheres Apaixonadas (2013), Madonna Chegou (2017), Bacia das Almas (2017), Tanto Faz se for Mentira ou Verdade
(2018), Cortina de Contas (2018) e Brasília, Meu Amor (2019). Membro da
Academia de Letras de Brasília.
*Diego
Mendes Sousa
é poeta piauiense. Advogado, Jornalista e Indigenista. Funcionário Público
Federal.
Escritora
Gracia Cantanhede I Foto: Reprodução
FRAGMENTOS DO ROMANCE DE GRACIA CANTANHEDE
ESCOLHIDOS POR DIEGO MENDES SOUSA
Meu nome de batismo é Maria Divina de
Oliveira, mas cresci escutando todos me chamarem de Vina. Nasci no sítio Pelego
Velho, município de Arapiraca, estado de Alagoas, no ano de 1959.
Aqui estão as anotações de uma vida
inteira. Memórias alinhavadas pelo cadarço encardido dos meus sapatos rotos. O
que me foi contado ou me lembro, ou vivi e senti.
Meu pai, Genilson Ribeiro de Oliveira,
pardo, agricultor, nunca frequentou escola. Era inteligente e trabalhador, pelo
menos na juventude. Minha mãe, Severina da Silva Oliveira, negra, dona de casa,
analfabeta, também trabalhava na agricultura. Os dois tiveram 23 filhos, mas
apenas 12 se criaram. Seis homens e seis mulheres.
..........
Sempre é possível encontrar uma porta,
mesmo que não se abra para uma paisagem agradável aos olhos. A porta aberta,
imprevisível, semelhante à vida.
..........
Doer, sempre doeu. Dói-me a vida, em
lembranças.
Eu rezava e pedia a Deus para
afugentar de mim tanta desgraça. Tinha o sonho de encontrar, em algum lugar, a
liberdade e a paz.
A oração sempre me separou das dores
do mundo e me aproximou da bondade de Deus.
..........
Nos dias de folga, uma das nossas
brincadeiras preferidas era nadar no rio. Aquelas águas nos ajudavam, com um
pouco de alegria, a amenizar o calor do sol forte das longas tardes da
infância. Também brincávamos de subir em árvores. Havia disputa para ver quem
subia mais alto e mais rápido. Os galhos de uma goiabeira se tornavam
trapézios, como nos circos. Um vai e vem gostoso. Sensação de liberdade a cada
galeio. Ríamos de tudo, e, se conseguíssemos pegar uma fruta madura, era uma
alegria só. Antes de cair a noite, brincávamos de cabra-cega. Eu era sempre a
primeira a ter os olhos vendados e a me ajoelhar, como manda o jogo. As
crianças faziam uma roda à minha volta e começavam a falar, todos juntos:
cabra-cega, vem me pegar. Nós conhecíamos a brincadeira, já adaptada aos nossos
terreiros poeirentos.
..........
A cabra-cega sempre volta à cena
quando tenho desejo de morrer. Uma lembrança grudada em mim como carrapicho.
Os olhos vendados de alguém que tenta
mudar o seu destino, mas sem saber o rumo. Como achar a saída de um labirinto?
..........
A tristeza era constante, minha
companhia e minha opressão. Durante vários meses, tive a sensação de não
pertencer a lugar nenhum. Uma desgarrada. Como se pedisse desculpas ao mundo
por existir.
..........
O que senti naquele dia foi,
sobretudo, esperança.
Por isso, a vontade de ir além. Por um
motivo ou por todos. Caminhar sempre. Ir, ter a fronte além dos olhos. Seguir.
Mesmo que já houvesse tentado alguns caminhos em vão. Essas coisas, capazes de
fazer muitas outras pessoas descrentes, não fazem o mesmo comigo. Eu queria ir
mais longe.
Queria o fugidio horizonte.
..........
Sobrevivi à muita coisa. Isso me leva
a acreditar no destino. Era minha sina passar por tanta barbárie e poder
escrever uma nova história, mesmo que não tenha sido a que idealizei.
Mas o que idealizei? Fazer o certo, e,
a cada tentativa, errava. Sempre tive facilidade para cometer erros.
Errava por ingenuidade, por pobreza de
espírito. Fui pobre de tudo. De acertos também.
Passei a minha vida tentando corrigir
os erros que cometi na ânsia de acertar. Sou uma culpada inocente, mas primeiro
tenho, eu mesma, que me perdoar.
..........
Se eu for pintar a felicidade, eu
pintarei um bolo de cenoura sobre a minha mesa da cozinha. É amarelo, da cor da
gema do ovo. Mas não é só pela cor. É pelo cheiro que sentirei toda vez que eu
olhar para o quadro. É pelo prazer de lembrar que posso ter os ingredientes,
fazer, repartir e comer uma fatia de bolo quente, recendendo pelo lar. Quando eu
não tinha dinheiro algum, imaginava ter uma casa arejada, onde a luz iluminasse
a manhã e eu pudesse fazer bolos e sentir o aroma entrar pelas narinas e levar
a felicidade ao coração.
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