TARCÍSIO E A LIVRO 7
Por Urariano Mota*
Publicado por DCP
em 31/01/2021
Tarcísio
e a sua Livro 7 I Reprodução: Página de Júlia Pereira
Tarcísio Pereira, o
maior livreiro do Brasil, nos deixou na noite de 25 de janeiro de 2021. A
covid-19 o levou neste ano desgraçado. Matou-o, mas não mata a memória do homem
público, pois Tarcísio Pereira é a sua obra, a sua maior. Sobre criador e sua
livraria, recupero estas linhas.
Em 27 de julho de
2020, a Livro 7 completou 50 anos de fundada no Recife. Ainda que não mais
exista em morada concreta, ela ainda reside no sentimento de muitos recifenses.
Por isso, acho natural recuperar um texto que publiquei no La Insígnia.
"A livraria era
aqui", dizemo-nos, enquanto caminhamos na Sete de Setembro. Dizemos isso
não nos referindo à livraria da Sete de Setembro, número 329, do seu último
endereço. Mas à de antes, números recuados na mesma rua. E recuando-a assim, números
atrás, recuamo-la também no tempo para 1970. Ela ficava numa loja, à direita de
quem vem da Conde da Boa Vista, numa lojinha pequena, densa, de livros e de
gente, por trás do que se tornou depois uma loja de frios. Ou seria por trás de
uma lanchonete, no térreo do mesmo edifício, onde estava uma loja de queijos, à
margem de um corredor? Se a memória física confunde a sua exata localização, a
memória humana é mais precisa.
Chegávamos aos
sábados, à espera de O Pasquim. Tarcísio fazia-nos beber, sem muitos rogos,
copinhos e mais copinhos de batida de limão, enquanto o jornal não aparecia.
Por Deus, seria difícil uma espera mais venturosa. Cachaça, Lukács, limão,
Proust,
Hemingway e açúcar.
Mais cachaça Baudelaire, limão Manuel Bandeira e açúcar Scott Fitzerald. E
Hess, e Brecht, misturas que só de lembrar fazem voltar à boca o seu travo.
Gildo Marçal, antes de ser lukacsiano em São Paulo, dizia-nos que Lukács fora
injusto com os existencialistas. Os que não sabíamos francês sempre achávamos
que Sartre era um nome oxítono, Sartrê (e quanto charme nos lábios aspirando
Sartrê, fechando a última vogal, com um r bem gutural, "à francesa").
O Velho e o Mar era a maior novela que alguém já escrevera (perdoem a nossa
ignorância), e Este Lado do Paraíso subia-nos à garganta como o próprio inferno
em que vivíamos. De repente, O Pasquim chegava, e rumávamos para o bar em
frente, na certeza de que "intelectual não vai à praia, bebe".
Tarcísio deve ter
começado a nos fazer seus clientes quando O Pasquim começou a atrasar. Mas isso
é só uma suspeita. O certo é que passamos a comprar livros, como um sistema,
semanalmente, a partir da Livro 7, a pequena, onde esperávamos O Pasquim.
Antes, boa parte de nossa cultura humanística era fruto do que chamávamos, num
eufemismo, de expropriação, ou dizendo de outra maneira, de empréstimos
ocultados aos olhos dos bibliotecários. Tarcísio nos abriu a um só tempo os
livros com cheiro de papel novo e o crédito, a nós, que não possuíamos nenhum
na praça. Depois, com a chegada do primeiro emprego, e o término de cursos e
mestrados nas faculdades, quando a quitação de nossas dívidas deixou de ser uma
dúvida, a sua Livraria cresceu, adiantou-se nos números da Sete de Setembro, a
ponto de atingir em 1993 o lugar de a maior livraria do Brasil de todos os
tempos.
É uma pena que neste
espaço não caiba o desenvolvimento da sua história, que tanto tem a ver com a
nossa própria, de formação, encontros e desencontros, nestes 50 anos da sua
criação. Ocorrem-nos valores que não têm vez no mercado, como dever,
lembrança-referência do Recife, formação do espírito. Todos bens - como
dizê-los? - intangíveis.
Por fim, ou deveria
ficar no começo?, digamos então, para o começo do fim, é importante destacar
que a Livro 7 se inscreveu na história cultural do Recife, no ramo de livrarias
que teve um ponto alto na Livraria Imperatriz. Explico por que em três
importantes depoimentos.
No primeiro deles, na
declaração do grande químico Ricardo Ferreira, falecido em 2013, onde fala como
soube no Recife da obra seminal de Linus Pauling, Prêmio Nobel de Química:
“Quando eu cursava o
terceiro ano do Curso Colegial, no Recife, em 1945, meu Professor de Química
era o Dr. Hervásio Guimarães de Carvalho, que logo depois foi para o Rio de
Janeiro e se tornou um dos grandes físicos experimentais do Brasil, centrado no
C.B.P.F. Hervásio dava algumas aulas sobre a ligação química e nos disse que o
grande pesquisador nesta área era Linus Pauling, em Pasadena, Califórnia.
Descobri então que existia à venda, na Livraria Imperatriz, de Berenstein &
Irmãos, alguns poucos exemplares do livro de Pauling, e comprei logo um.”
Essa importante
declaração ligo a uma entrevista que o cientista Antonio Carlos Pavão me
concedeu:
“Vou citar aqui um
exemplo, que é do Ricardo Ferreira. O Linus Pauling publicou um livro, que eu
acho o livro mais importante da Química no século 20, que é ‘A natureza da
ligação química’, The Nature of the Chemical Bond. São três edições desse
livro. A segunda edição, que é a mais importante, o Ricardo Ferreira comprou aqui
no Recife, em 1945, no original em inglês. E me disse ele que num simpósio em
Paris, o professor Daubel lhe disse: ‘olha, esse livro que você comprou no
Recife em 1945, aqui em Paris ele não existia na época’. É impressionante, não
é? …”
E finalmente, a
ligação do dono da Livro 7 com a excelência do mundo livreiro, quando fala onde
ele aprendeu a ser livreiro:
“A Livraria
Imperatriz, para mim, foi onde tudo começou”. Com o dono da Imperatriz, Jacob
Berenstein, Tarcísio Pereira aprendeu e chegou à gerência. “Jacob me ensinou a
saber vender o livro e amar o livro”.
Livro
7, uma livraria que entrou para a história
Ou seja,
enfim: da Livraria Imperatriz à Livro 7, que se tornou a maior do Brasil, tudo
é história.
*Urariano Mota é escritor e
jornalista recifense
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