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OS SELVAGENS CLARÕES DE CARLOS NEJAR: A INFÂNCIA, DEUS E A PALAVRA

 

Por Diego Mendes Sousa*

Publicado por DCP em 31/01/2021















O livro “A tribo dos sete relâmpagos” (Editora Life, 2020) é uma peça filosófica romanesca advinda da magia verbal de Carlos Nejar (1939-).

 

Dizia Mallarmé que “o poeta aperfeiçoa as palavras da tribo” e Carlos Nejar enfatiza que “de tanto me espelhar nas palavras, elas se parecem comigo”. Assertiva conceitual, porque a narração de “A tribo dos sete relâmpagos” é um retrato do tempo através dos sonhos e das visões.

 

A obra é uma celebração à infância, a Deus e à palavra. É também uma fábula deslumbrante sobre a morte e a eternidade. Nela encontro os matizes caros à cosmogonia nejariana, como a ressurreição do pensamento que se eleva com um discurso profundo sobre a natureza da alma humana e dos seus descaminhos.

 

A estória acontece no Brasil, portanto, na América. A ficção se desenvolve em primeira pessoa e a personagem principal chama-se Pampa. Nejar demonstra o seu amor por sua terra natal e transfigura a sua mulher, Elza, em Elva, ou seria Eva? Tudo parece esquecer, para lembrar.

 

Sete relâmpagos são os guizos da morte. A tribo é uma liturgia imaginária sobre o paraíso. A floresta é o jardim do Éden, onde Pampa, ou seria Adão?, conhece a luz, a loucura, a beleza e a imperfeição.

 

A narrativa perpassa pela civilização e pela selvageria arrebatadoras. Carlos Nejar sabe, como nenhum outro criador, reinventar a tradição bíblica, pois opera com o sagrado. As suas representações são galopes, repletos de provérbios extraordinários.

 

Há no romance uma passagem vigorosa sobre os Solaios, grupo de índios canibais em guerra com os Tumuios, seus inimigos. Nesse trecho encontro uma valorativa simbologia indianista, que rememora a mitologia e a cultura indígenas, com descrições xamanistas e impressões agudamente idealizadas.

 

A obra de Carlos Nejar é uma cintilação de linguagem surreal e fascinante: “O tempo é mágico, por ninguém saber como ele veio, ou se forma.”. E ainda: “Quando se tem pouco a dizer da infância, a infância tem muito a dizer por nós.”.

 

Seu estilo é inconfundível, prosa iluminada, que arvora o leitor de maneira poética e visceral.

 

Não posso detalhar o enredo, porque compete ao apreciador da alta literatura desvendar os seus inúmeros segredos, mas antecipo que o encantamento será uma plenitude de ritmos, pois estamos diante de um bardo, cuja genialidade faz clarão sobre a memória do homem e amplia o universo existencial com os seus cavalos e ventos de signos invencíveis.

 

Vivemos tempos de escuridão e os relâmpagos da incerteza, furiosos nos apavoram. O belo título “A tribo dos sete relâmpagos” atmosfera a verdade sobre as velozes necessidades da vida, bem como sobre a entrega definitiva de Carlos Nejar ao coração do Absoluto: “(...) até onde a infância de Deus é palavra. Até onde é Deus: acordando.”.







*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense. Amante da volúpia vocabular e criativa de Carlos Nejar. 










Carlos Nejar é imortal da ABL

Foto: Reprodução







FRAGMENTOS DO ROMANCE 

DE CARLOS NEJAR

ESCOLHIDOS 

POR DIEGO MENDES SOUSA







A memória tende a ser enganada:

 

a. Por um pássaro que entra por lapso dentro dela e se extravia entre manuscritos e gravetos. Só sairá ao achar a fresta;

 

b. Por uma alazão que a inebria e esquece a noção de lembrar;

 

c. Por um galho que cai nos meandros e impede o fluir de sua foz;

 

d. Por um trovão capaz de romper seu dique;

 

e. Pelo sol que derrama tanta luz que pode entupir o movimento de memoriar;

 

f. Ou quando a memória se enamora de si mesma e fica no fundo sem voltar.

 

 

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Amar é olhar para frente. Sei que, de tanto me espelhar nas palavras, elas se parecem comigo. E se parecerão sempre. A deferência da tribo é das minhas palavras. Por não sermos diferentes, também por nos encantarmos existindo. O que muda nos hábitos, não muda nos sonhos. A perfeição não precisa da verdade, mas a verdade arrima a perfeição.

 

 

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A educação do idioma passa pela educação dos sentidos, como as cores pelo Arco-Íris.

 

E um bando de palavras compõe uma constelação. E a Via-Láctea cavalga montada nas estrelas e cometas. Quando Deus cavalga o sibilante firmamento. O que é ditoso, adivinha.

 

 

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Deus escreve com linhas tão curtas, tênues, que a realidade é o apêndice da imaginação. E o uso vai-se acomodando noutros usos.

 

Não se vê a Sua letra, senão quando o homem com altivez tolera o infortúnio. Ou o próprio infortúnio suporta o homem. Sem saber, se de baixo, ou de cima: de que parte do Planeta procede.

 

Deus escreve com letras mansas e altos sonhos. Sua escrita não tem fecho, nem defeito. E descasca a realidade, igual a uma cebola, descasca a cebola, igual à morte que não se descasca. E tem justiça que acontece pelas abas, não gasta água ou pedra, justiça terminada.

 

Deus escreve com letras tão fundas que ninguém apaga. Nem oculta, por cintilarem. Como jamais se apaga o solau do firmamento. Ou sua jovem sarça, entre as chamas. Tecendo o cristal de uma eternidade que não cessa, nem se quebra.

 

Deus escreve eternidade com linhas férreas. Com linhas que ninguém enterra.

 

 

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O que narro, é do vivido. Amor não tem tamanho e se tiver, não é amor.

 

Não carece de memória, por se inventar. Não faz o que quer, mas o que deve. Sendo sonhado, mais do que sonha.

 

Nasce da fome e é enterrado com música. Tudo nele vai-se urdindo sobre o nada.

 

E o paraíso do corpo é o do espírito, que nunca será perdido, como outros que se foram extraviando, fora de alma.

 

Como não precisa de sol, o amor não tem sombra.

 

 

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A morte não acrescenta nada. Não acrescenta nem a míngua, ou a borda de existir. Não acrescenta nenhum remendo no seu forro. Não acrescenta a morte nada a si mesma. Sim, a morte não tem nada dentro. E não explica a vida.

 

 

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Amor é difícil de usar e mais ainda de existir. E me consolava com Elva andando em mim, andando de nunca esquecer.

 

No amor não há deserto. O deserto ralha dentro, pela secura, porque não se escava de sonhar. E se luta para não recusar a vida, pois águas velhas não guardam o antigo fervor.

 

Amor é difícil de usar. O que importa é saber que as coisas são sempre antes. O que acontece parece não acontecer e o riacho vem pelos subterrâneos. O espetáculo é na antessala. Contar dói muito, dói também por se chegar longe e não dá para retroceder. Não cavo fossos e assim evito de cair neles. Nem desloco pedras que podem me ferir. Minha sensatez deve ter certa loucura, mas a suficiente para me inebriar. Mas não fiz do amor, um barco. E a língua é degrau da noite. Com a educação que começava a parir o coração sábio do povo. E repito; amor é difícil de usar.

 

 

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O absoluto, ao cair da árvore, não padece dano. Por ser tão leve que, ao tocar o solo, não se desfigura. Essa levidade contém o infinito numa gota de água. Mas o absoluto não é lance de dados mas de luz. E ao se erguer do ar ninguém impede.

 

Quem se inventa, dispara dentro da realidade. Quanto mais real, mais sonhado. Quanto mais eu morrer, mais continuo vivo.

 

O absoluto não tem música de cordas, tem as entranhas do céu que não vêm nunca de fora.

 







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