ENTREVISTA COM O ESCRITOR CARLOS NEJAR
Por
Diego Mendes Sousa
“Mas tanto na poesia, como na ficção, não raciocino, sou raciocinado, não sonho, sou sonhado.”.
Carlos
Nejar / Foto: Reprodução
Esta entrevista com o gênio criador Carlos Nejar é um relicário preservado
pela memória de Diego Mendes Sousa,
com exclusividade para o saite Domingo
com Poesia.
Carlos
Nejar
nasceu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 11 de janeiro de 1939. No
âmbito profissional, foi Advogado, Promotor, Procurador de Justiça e Professor
de Português e Literatura.
Com quase 100 (cem) obras publicadas,
dentre poemas, romances, dramaturgia, contos, novelas, ensaios e
infanto-juvenis, destaco os livros, Casa
dos arreios (1973), Somos poucos
(1976), Árvore do mundo (1976), O chapéu das estações (1978), Um país o coração (1980), A ferocidade das coisas (1980), Amar, a mais alta constelação (1991), Meus estimados vivos (1991), Elza dos pássaros ou a ordem dos planetas
(1993), O túnel perfeito (1994), Sonetos ao paiol, ao sul da aurora
(1997), Teatro em versos (1998), Carta aos loucos (1999), Velâmpagos: haicais ou móbiles (1999), Todas as fontes estão em ti (2000), O caderno de fogo (2000), Ulalume (2001), Guilhermina enfermeira e tia da República (2002), As águas que conversavam (2003), O poço dos milagres (2004), Canções (2007), O inquilino da Urca (2008), Jonas
Assombro (2008), A nuvem candidata à
presidência (2010) Contos inefáveis
(2012), A negra labareda da alegria
(2013), Matusalém de Flores (2014), Quarenta e nove casidas e um amor
desabitado (2016) e A explosão
(2019). São títulos publicados por renomadas casas editoriais do Brasil.
Carlos
Nejar
pertence à coleção Melhores Poemas,
da editora Global, com intuitiva escolha e apresentação de Léo Gilson Ribeiro (1929-2007), uma obra-prima da poética desse
país.
É membro da Academia Brasileira de
Letras (ABL), da Academia Brasileira de Filosofia, da Academia
Espírito-Santense de Letras, da Academia de Letras de Brasília, do PEN Clube do
Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo.
Ganhou o nome de uma rua na cidade de
Gravataí (RS). Detentor do Prêmio Nacional de Poesia Jorge de Lima do Instituto
Nacional do Livro, do Prêmio Fernando Chinaglia da União Brasileira de
Escritores do Rio de Janeiro (UBE-RJ), do Prêmio Machado de Assis de Romance, da
Biblioteca Nacional, do Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, do
Prêmio Luísa Cláudio de Souza do PEN Clube do Brasil, entre outros.
Carlos
Nejar
é um dos autores mais estudados da Literatura Brasileira, sendo um clássico com
extensa fortuna crítica, e um dos bardos mais lúcidos da segunda metade do
século XX e início do século XXI, após Carlos
Drummond de Andrade e João Cabral de
Melo Neto.
Nesta conversa histórica, Carlos Nejar faz uma vasta releitura
bibliográfica e memorialística sobre a sua criação. Pioneiro e ápice de uma
geração de grandes valores para a poesia nacional, o poeta gaúcho discorre
sobre as suas escolhas estéticas, empreendendo uma viagem pelo conhecimento,
com fortes símbolos e belas metáforas.
Consegui extrair de Carlos Nejar, confissões e cousas que
jamais foram exploradas. São revelações formidáveis, que envolvem
personalidades da nossa inteligência, como Eduardo
Portella, Antônio Houaiss, José Guilherme Merquior, Mario Quintana, João Cabral de Melo Neto e Clarice
Lispector.
Em comemoração aos 60 (sessenta) anos
de atividade literária de Carlos Nejar,
o presente diálogo é um escaninho da sensibilidade e do pensamento daquele que
é, para mim, o maior poeta vivo do Brasil. Sua poesia contém sabedoria
ancestral, sendo profética e visceralmente humana, com a fluidez de uma
linguagem própria, renovadora e comunicante com o seu tempo, pois, segundo a
dicção nejariana, “o poeta não se aparta
nunca da visão do real, é uma consciência do inconsciente coletivo”, ou ainda,
“não é só a infância do mundo o desígnio da poesia: faz o poeta participar da
agonia de nossa época e das reivindicações de seu povo”.
O vento é o vento;
as crinas não rompem
o silêncio
e ao galope
retumba a água,
prossegue sempre
até que o tempo
desmonte a morte,
no seu galope,
desmonte o tempo,
prossegue sempre.
(Trecho de “O campeador e o vento” de Carlos Nejar)
(Registro iconográfico de Diego Mendes Sousa /
Acervo Particular)
Diego
Mendes Sousa
- Ao olhar em retrospectiva a sua obra de fôlego e de elevada permanência
estética, percebi que neste ano de 2020 comemoram-se os 60 anos da sua estreia
literária, com o livro de poemas Sélesis (1960). Alguns autores
brasileiros da sua admiração, como Cassiano
Ricardo (1984-1974) e Olegário
Mariano (1889-1958), relegaram a legitimidade das suas primeiras
publicações. Isto aconteceu com você, em Sélesis, que veio à luz quando dos
seus 21 anos de idade?
Carlos
Nejar
- É verdade que completo 60 anos de criação. Envelheço de nova juventude, agora
aos 81 anos de idade. Sim, tinha 21 anos quando publiquei “Sélesis” (1960). Diferente de alguns, que relegam seu primeiro
livro, eu o assumo. Nele estão as sementes de futuros livros. Bem como o
prenúncio do cantar épico: “Se quiserem saber donde venho / - Não sei donde
venho / Talvez venha do deserto / do mar/ Ou do fundo das madrugadas” // (...)
“O pão que trago comigo / - Não é pão / É fogo. / O vinho que trago comigo / -
Não é vinho / é Sangue. // E todos hão de beber / do Fogo e do Sangue (Poema
deixado por Silbion na entrada “dos
Infernos” (previsão do “Livro de Silbion”,
editado em 1963). Ou “As noites em ti naufragam / os dias em ti se somem / Qual
o destino do homem?”. Ou os versos do poema do cão Sélesis: “Do ar não nascem pássaros / E o homem é uma angústia de
Deus”. Marca a futura busca espiritual na minha criação. Quando só conhecia
Deus de “ouvir falar”, Deus é que se revelou. Pleno.
DMS - Além de Sélesis, durante a década de sessenta,
século passado, você se fez reconhecido com mais quatro publicações. Dentre
elas estão O campeador e o vento (1966), um clássico do cancioneiro
pampiano, antecedido pelo Livro de Silbion (1963) e pelo Livro
do tempo (1965), sucedido por Danações (1969). As pulsações
criativas desses livros são tão fortes, que fizeram a formidável ensaísta Nelly Novaes Coelho (1922-2017),
escrever o livro Carlos Nejar e a geração de 60 (1971). O que você guarda dos
diálogos com Nelly Novaes Coelho e como é saber-se porta-voz de uma geração
luminosa, com artistas predestinados, como Álvaro
Alves de Faria, Ivan Junqueira, Astrid Cabral, Orides Fontela, Anderson
Braga Horta, Nauro Machado, Olga Savary, Marcus Accioly, Ildásio
Tavares, Cláudio Murilo Leal e Reynaldo Valinho Alvarez?
CN
-
Acho que fui pioneiro na minha geração, que Nelly Novaes Coelho chamou de “60”.
Drummond vislumbrou “a pedra no meio
do caminho”, genialmente. E a nossa geração tentou levantar e retirar a pedra,
com gesto épico de mudança. Ou o gesto profético de Futuro (é o nome do
personagem de “A Idade da Aurora ou Fundação do Brasil” - 1990). Cada poeta
levou a pedra à sua maneira. Cito Marcus
Accioly, de Pernambuco, que criou “Sísifo”,
na coleção “Sélesis”, que Nelly
Novaes corajosamente editou na “Quíron”,
em São Paulo.
Sim, o nome de Nelly Novaes Coelho deve ser registrado pela visão e pioneirismo,
ao escrever “Carlos Nejar e a Geração de
60”, editora Saraiva (1971). Depois veio o livro de Guillermo de la Cruz Coronado, “O
espessamento poético de Carlos Nejar”, pela ed. da Universidade do RS,
1981; “A Poética de Carlos Nejar”, de
Ernani Reichmann e Temístocles Linhares, pela Universidade
de Curitiba, em 1973; O livro de Giovanni
Pontiero, da Universidade de Manchester, Inglaterra, em 1981, através da
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, “Carlos
Nejar, Poeta e Pensador”.
Em 2009, ed. Gramma, do Rio, “Carlos Nejar, Poeta da Condição Humana”,
com organização de João Ricardo Moderno.
E em 2019, “Carlos Nejar: Um Imenso
Poeta”, de Eduardo Jablonski,
ed. Class. Não posso esquecer “O
dicionário de citações da ficção de Carlos Nejar”, de Paulo Roberto do Carmo, ed. Batel, Rio, 2009, e “Carlos Nejar, um Homem do Pampa”,
edição de Luxo, Dicionário, com disco, 2018, Ed. Mecenas / MEC / Záfari, com
vários autores, tendo organização de Luiz
Coronel, na mesma coleção de Carlos
Drummond de Andrade, Fernando Pessoa,
Guimarães Rosa, Erico Verissimo, Clarice Lispector.
Saliento na minha obra, “O campeador e o
vento”, ed. Sulina, 1966, que o saudoso crítico Ivan Teixeira, considerava e Wilson
Martins o chamou de “Os Lusíadas do Gaúcho”.
Guardo de Nelly Novaes Coelho, saudade da generosa e visionária crítica, que
foi Amiga querida. Divulgou-me também no “Colóquio-Letras”, de Portugal, e eu,
um quase desconhecido. E me convidou a São Paulo, a um Congresso de Escritores,
em 1970, quando conheci Borges.
Nelly faz muita falta. Cabe também referir nomes importantes da Geração como Álvaro Alves de Faria, Marcus Accioly, Ivan Junqueira, Nauro
Machado, Astrid Cabral, Cláudio Murilo Leal, Reynaldo Valinho Alvarez, Anderson Braga Horta, César Leal, Paulo Roberto do Carmo, Luiz
Coronel, Ildásio Tavares, Carlos Legendre, José Eduardo Degrazia, Vera
Lúcia de Oliveira, Pedro Lyra...
DMS - Em 1975, na
revista Tempo Brasileiro, saíram duas brilhantes notas críticas sobre a
sua obra poética, escritas por Eduardo
Portella e José Guilherme Merquior.
Você já era o autor de Canga (Jesualdo Monte), de 1971,
e de O
poço do calabouço (1974), que lhe consagraram como um dos grandes
poetas do Brasil. Em qual dimensão as visões privilegiadas desses críticos
firmaram a sua voz enquanto escritor?
CN
-
O grande crítico, Eduardo Portella, na revista “Tempo Brasileiro”, escreveu sobre mim e sobre “a ressurreição da
palavra”, no período em que ela foi abolida pelo Concretismo. Também Merquior, escreveu sobre mim,
observando ser minha poesia de resistência. E fui testemunha em um tempo
obscuro do Brasil, sob o Regime Militar, com “Canga”, “O poço do
calabouço” (visão daquela época) e “Árvore
do mundo”, com os “executados”. Nunca pertenci a nenhum partido, salvo o da
condição humana. Eduardo Portella e
Merquior me apoiaram muito na entrada para a Casa de Machado. Merquior mandou-me o voto duas vezes, o
primeiro se extraviou nos correios. Eduardo me saudou no dia da posse e anotou:
“Carlos Nejar é o poeta da revelação do
Deus vivo”. É o que levo com maior honra.
Rachel de Queiroz e Carlos Nejar (Registro
iconográfico de Diego Mendes Sousa / Acervo Particular)
DMS - Em Chão
da crítica (1984), Fernando Py
(1935-2020) menciona que o poeta Carlos
Nejar, em um breve prazo de vinte anos, construiu uma obra de profundidade,
que suscita estudos e pode ser posta entre as maiores do século XX. Que outras
vozes seminais do pensamento crítico se sentiram motivadas a escrever sobre as
suas mitologias e/ou cosmogonias pessoais?
CN - Sim, Fernando Py escreveu sobre minha obra
no seu precioso “Chão da Crítica”. Euryalo Cannabrava, companheiro da
Geração de Drummond, no “Estado de S. Paulo” (26.8.1967), descobriu no “O campeador e o vento”, uma nova
técnica do ritmo, verificando que, ali, “as
imagens adquirem cidadania, exercendo funções que os símbolos jamais poderiam
reivindicar para si”. Ernani
Reichmann, no estudo sobre “Danações”,
adverte que “quando Nejar existe enquanto
poeta trágico, existe em seu ser mais profundo, em sua verdade”. Octavio de Faria, anota no n.1, da
Revista da Academia Brasileira de Letras, em 1975, “em Carlos Nejar, para onde não irá realmente o humano? Essa busca feroz, trágica é sua força
motora, a sua grandeza... Alguém capaz de atingir os cumes máximos de nossa
literatura”. Salienta o ensaísta Antônio
Hohfeldt (Correio do Povo, Caderno de Sábado, de Porto Alegre, em
11.12.1972), “com uma linguagem marcada,
plena de elipses, cheia de referências à realidade social do Terceiro Mundo,
Carlos Nejar recria o universo do século vinte”. Ou César Leal que afirma ser “Nejar
um criador de cosmologias”. Ou Antônio
Carlos Vilaça reconhece (julho de 1980) que, “de José Maria Cançado a Tristão
de Athayde todas as gerações o aplaudiram e estudaram”.
DMS - A sua
singularidade de poeta está explícita a toda prova, na obra Os
viventes (1979), seguida de reedições revistas e ampliadas, como a de
2010, publicada pela editora Leya, com a inclusão de cerca de duzentas
personagens. O que esses seres especiais representam em sua dicção artística?
CN - Trabalho “Os Viventes”, em uma obra em progresso,
desde antes de 1979. É uma espécie de “Comédia
Humana em miniatura”. Ali estão vários livros no Livro: os seres bíblicos,
os ofícios humanos e divinos, os bufões, os poetas, os guerreiros, os pintores,
os quadros, os escultores, os mitos, a caracterização de vícios ou as
qualidades da humanidade, os sonhos, os seres danados e benditos ou inventados.
Tenho mais cem personagens para a 4ª edição (a terceira esgotou pela ed. Leya,
em 2010). O crítico Pedro Lyra
considerava o livro “Um painel poético da
humanidade”. E Ivan Teixeira
constatou a sua singularidade: “poesia
sendo ficção”.
DMS - Em 1991,
você estreia na ficção com Um certo Jaques Netan. São inúmeros
romances essenciais, a exemplo de Riopampa – O moinho das tribulações
(2000) e de O livro do peregrino (2002). Gosto sobremaneira, de A
engenhosa Letícia do Pontal (2003) pelas reminiscências barrocas. Tive
a satisfação de assinar o posfácio de O feroz círculo do homem, publicado
em 2015. Como vem à tona as suas extraordinárias narrativas? Seguem o mesmo
fluxo dos poemas?
CN
-
Não, as narrativas têm um fluxo especial, diferente dos poemas. Se esses tratam
do sonho, aquelas, através da ficção, são os pesadelos contemporâneos. Mas
tanto na poesia, como na ficção, não raciocino, sou raciocinado, não sonho, sou
sonhado. O poema nasce mais fácil. Vem do ar e escrevo à mão sempre. Toda a
escrita primeiro é posta em caderno e depois digitada, quando aperfeiçoo a
primeira versão. Com “obstinato rigore”,
de que fala Leonardo da Vinci. O
fogo é dominado, pode até ser úmido, mas tudo passa pela exigência do artista.
A facilidade deve ter medo de mim e eu, dela. Na ficção não careço de inventar
palavras, elas se inventam na escrita. Depois de Camões, Fernando Pessoa,
Valéry, Rimbaud, Manuel Bandeira,
Cassiano Ricardo, Drummond, Jorge de Lima, Cecília
Meireles e João Cabral de Melo Neto,
não se pode deixar de aprender com os que vieram antes. Podemos ser ruptura,
mas há que conhecer a tradição. Como para pintar, é preciso saber desenhar. O
barroco é característica do Brasil, como a metáfora que uso na ficção, o
símbolo e sobretudo, a alegoria. Crio planos, para fugir do linear. Meu estilo
de época, conforme crítica de um Oscar
Gama Filho, é novo - o Sobressimbolismo.
E como diz André Malraux: “O mundo da arte não é o da imortalidade, é
o da metamorfose”. Visível, aliás, na obra de um Picasso, por exemplo, ou de um Miró.
Julgo o meu romance mais ignorado, pela invenção, do que minha poesia.
DMS - Você é
inovador, experimenta e reinaugura os gêneros literários, do épico ao lírico, a
passar pelos Haicais, Sonetos, Rapsódias, Cânticos, Casidas e Gazéis. O que é a
Épica
de Futuro no seu discurso ensaístico e qual o seu conceito acerca da
Poesia?
CN - Em primeiro
lugar, acredito na ruptura dos gêneros. Pode-se escrever poesia, ficção ou
ensaio e habitar na linguagem. No poema, posso criar ficção. Na ficção posso
empregar poesia, crônica, personagens, ensaio. O limite é a imaginação. Sim,
tenho uma visão épica, diversa da tradicional. A épica antiga trata de
acontecimentos que se deram, de heróis ou seres realizados dentro de
determinado tempo, com a relação de tempo e espaço. Na “Épica de Futuro”, que está presente em meu livro, que é rapsódia, “A Idade da Aurora, ou Invenção do Brasil” (1990 e teve várias
edições), prevê a Épica do que está sucedendo, tendo como um dos personagens,
“Futuro”. Daí o poeta, volta à forma original de vate, ou profeta. Já foi
traduzido ao espanhol pelo cubano Virgílio
Lemus, foi traduzida ao inglês e sueco. E o saudoso Fernando Py, falecido recentemente, considerou o
livro como “monumento da poesia da
América Latina”. Sairá nova edição de “O
evangelho segundo o vento”, pela ed. Life, e estão para sair “O humano cavalo”, pela ed. de Arte da
Universidade de São Paulo, e pela Recriar, “O
vale dos ossos secos”, ficção visionária, que é minha visão do fim dos
tempos, além de “Água de eternidade”,
pela ed. Penalux. No ano de 2019 publiquei também pela ed. CEPE, do Recife, “Os Degraus do Arco-Íris”, que escrevi em
2014 e é o que sofre o mundo hoje, na “caverna
pestífera”. Tudo é contemporâneo, mesmo que não se saiba. Mas Poesia, para
mim, é a forma de estar com todos. Ou de cair em Deus.
DMS - Você é
autor do magnífico História da Literatura Brasileira: da carta de Caminha aos
contemporâneos, em terceira edição já esgotada. Nesse livro, você
empreende, de maneira única e ousada, uma leitura profunda e subjetiva sobre
épocas, estilos e escritores, desde a nossa nascente literária à
contemporaneidade. Em diversos aspectos, o seu longo ensaio é pioneiro, e
confesso, que desde 2007, com a primeira edição, esse livro pertence à minha
cabeceira de leitor. Quais foram as principais dificuldades enfrentadas na
construção dessa obra e qual a repercussão após a sua publicação?
CN
-
A “História da Literatura Brasileira”,
que vai para a quarta edição, saída pela Leya, em primeira edição, que esgotou
em três meses e a segunda, em um ano. A terceira saiu pela Ed. Unisul e já
esgotou. Eu a escrevi no ano de 2001 e 2002, na minha biblioteca do “Paiol da Aurora”, que era um andar
inteiro, em Guarapari, onde vivi 20 anos, Espírito Santo. É uma leitura pessoal
de nossa literatura, sem seguir os paradigmas didáticos e as repetições sobre
autores, contemplando também os contemporâneos. Tentei fazer, com vasto romance
da literatura, um “novo estilo de
história da literatura”, segundo Nelly
Novaes Coelho, buscando relatar também outra história, a do Espírito
Humano. Chegou a 1.400 páginas. A repercussão foi impressionante, até hoje.
DMS
-
Em 1988, você foi eleito para a Academia
Brasileira de Letras (ABL). Durante esses mais de 30 anos como membro da
Casa de Machado de Assis, teve a oportunidade de conviver com João
Cabral de Melo Neto (1920-1999), cujo centenário de nascimento estamos
a celebrar. Quais lembranças você preserva do poeta pernambucano?
CN - Sim, fui
eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1988, tinha 50 anos, tomando
posse em 9 de maio do ano seguinte. Estou ali mais de 30 anos. Onde fui
secretário geral e presidente em exercício no ano de 2000. Conheci Eduardo Portella, J. Merquior e Antônio
Houaiss, as três maiorias Inteligências que encontrei. Merquior relampeava de agudeza; Houaiss era assombroso quando falava e hermético, quando escrevia.
Devo a ele o prefácio de “Danações” (1969). Não me conhecia: entrei em seu
escritório, com os originais debaixo do braço e lhe disse: “Se gostar, escreva; se não gostar, ponha no lixo!”. Ele contava
rindo como conheceu este pampiano. E mandou-me – quando eu era Promotor de
Justiça, em São Jerônimo - um longo e generoso Prefácio, que na primeira
leitura achei difícil (pensei: “será que
não apreciou meu livro!”), depois entendi que era uma análise de enorme
percepção. E me honrou muito. Também me apresentou em 1971, “Canga”, na ed. Civilização Brasileira.
Ao sair meu romance “Livro dos Cavalos”,
anotou que era “criação tão intensa, tão
passional da condição humana, buscando atingir os ápices do “Homo Sapiens”, o
que é dado a poucos, esses que na normalidade, há um quantum de loucura e outro
tanto de santidade” (1995).
Eduardo
Portella
era tão lúcido, que chegava ao extremo de ver tudo e ter o humor de olhar a si
mesmo. Conheci João Cabral em 1967,
quando foi a Porto Alegre e ao chegar deu uma entrevista no “Diário de
Notícias”, me citando com admiração, dizendo que eu era, com “O campeador e o
vento”, um criador de murais. Ficamos amigos no tempo. Mandei-lhe o inédito de “Canga” e me aconselhou a cuidar, para
não acontecer como aconteceu com ele, que foi demitido por motivo político
(depois foi reconduzido), no Itamaraty, ao ter criado o genial “Morte e Vida Severina”. Votou em mim na
minha eleição para a Casa de Machado, só não publicizou por causa de pedido que
foi feito de outro candidato. Convivemos na Academia e recordo a dedicatória –
sendo tão severo – na sua “Obra Completa”,
da Aguilar: “Ao caro Nejar, poeta maior,
com a amizade de João Cabral de Melo Neto” (Set/1995). Como o tempo corre,
agora o homenageamos pelo centenário.
(Registro
iconográfico de Diego Mendes Sousa / Acervo Particular)
DMS - Conte-me
sobre a sua amizade com o gaúcho Mario
Quintana (1906-1994) e também com Clarice
Lispector (1920-1977), ambos ícones da literatura brasileira e de
inquestionável popularidade no país.
CN
-
Mario Quintana era meu Amigo e o
encontrava na redação do “Correio do Povo”, já viajei com ele pelo interior do
pampa, para conferência, ou nos achamos nalgum Encontro de Escritores, ainda
que raramente ia. Como gostava da xícara grande de café, com humor sempre
presente! Um dia fiz o lançamento de um livro infantojuvenil na antiga Editora
do Globo e ele, o seu “Baú de Espantos”.
Ficou tão aturdido com o fato de ter que lembrar nomes nas dedicatórias, que
pegou meu livro e escreveu nele – “Para Carlos Nejar, com admiração e abraço
cúmplice, do Mario Quintana”.
Foi também em Porto Alegre, em um
Encontro de Escritores, que conheci Clarice
Lispector. Telefonei-lhe, quando no hospital, antes de falecer. Sua “Água viva” é dos seus grandes livros.
Nem precisava de enredo. Era sua alma no esconderijo do silêncio. Vislumbrou o
ficcionista, que eu seria. Foi a dedicatória mais incrível que recebi: “A Carlos Nejar, com admiração e que
identifico a mim, tão burro quanto eu”.
DMS - Sua poesia
é detentora de um relevo social, que se alimenta dos dramas humanos. Livros
como A
idade da aurora: fundação do Brasil (1990), Simón vento Bolivar
(1993), Tratado de Bom Governo (2004), Odysseus, o velho [Poemas]
(2010) e mais recentemente, de 2019, Os invisíveis [tragédias brasileiras],
intensificam o seu projeto identitário das dores nacionais e o seu testemunho é
secular e vital. Por que a insistência em operar a memória, o sentimento e a
realidade?
CN - Quando
escrevi o primeiro romance, “Um certo
Jaques Netan”, que saiu pela ed. Record, tinha 40 anos e me adveio “a memória do esquecimento”: comecei a
criar ficção. Sabia de cor meus poemas e os recitava e não é que passei a
esquecê-los e são os poemas agora que me devem lembrar. Era como se eu
trabalhasse o aluvião, a terra de ninguém que se inaugura à margem do rio da
invenção. Desenvolvi a memória da espécie, esta memória, que as palavras
acendem, a memória dos sonhos. E é onde se ativa o tempo. Até conseguirmos uma
espécie de memória da eternidade. E uma se reproduz em outra, como espelho.
Pois, ali, no inconsciente coletivo, a memória segue os sulcos dos seixos no
lago. E tudo é memória, entre os mitos. Entre os livros, menciono “Os Invisíveis (tragédias brasileiras)”, ed. Bertrand, em 2019, com “O Monumento ao Rio Doce” (água); “Martírio do Museu nacional” (fogo); “Brumadinho: tocata de barro em Dor maior”
e “Amazônia dos Awás (lâmina e ganância)”. É o painel do
Brasil contemporâneo que sofremos e nos sofre. “Épico de nossos dias”. Com versos como epígrafes.
DMS - O seu livro
A
vida de um rio morto: monumento ao Rio Doce (2016) foi o primeiro
memorial sobre a tragédia ambiental em Minas Gerais. É uma obra histórica, que
expõe o sofrimento e denuncia as mazelas provocadas pela ambição destrutiva.
Você ainda acredita na humanidade?
CN
-
“O Monumento ao Rio Doce”, publicado
em 2016, traduzido ao inglês por Marco
Alexandre de Oliveira, saiu no volume, “Os
Invisíveis” (2019). Parece que previ os vírus invisíveis que atacam o mundo
e principiaram em março deste ano no nosso país. Ou é de como no Brasil as
coisas invisíveis são por demais visíveis ou as mazelas provocadas pela
indústria e o homem. Tenho a mesma humanidade em mim, que resiste. Crendo que o
espírito humano pode vencer todas as calamidades. Mas precisa de Deus.
DMS - Sua última
publicação é o livro de poemas A árvore de Deus (2020), editado em
Lisboa. Comente sobre o seu diálogo com o sobrenatural, com os sonhos e o com o
âmago de fé junto a Deus.
CN - Sim, saiu
este mês, em Lisboa, “A árvore de Deus”.
O volume, poeticamente, é a busca na linguagem deste Absoluto. Devo tudo a Ele,
desde o dom, de que sou inquilino, até a alegria da revelação do “Livro do Caminho”, que consola neste
áspero tempo, ou Sua presença, o Deus do Impossível, o Deus vivo. Meu melhor e
mais antigo Amigo. Desde a Eternidade. E a minha companheira Elza Mansidão.
DMS - Em diversas
publicações de sua autoria saltam epígrafes com escritores universais, como Jorge Luis Borges e Pablo Neruda, de quem você foi exímio
tradutor. Além disso, sempre constam pensamentos de um intelectual chamado Longinus,
que o leitor mais desavisado logo acredita se tratar de um filósofo latino da
antiguidade. Afinal, quem é Longinus?
CN - Sim,
traduzi Borges e Neruda, são admirações. E Longinus é criação minha, do livro “A vida secreta dos Gabirus”, ed.
Record, 2014, é filósofo e pensador das “Vidências”,
aforismos que inventei e uso, às vezes, em epígrafes ou na “História da Literatura Brasileira”. Se existiu, perde-se na
memória, não é o mesmo. Esse foi inventado por mim, ou me inventou.
DMS - Fale-me do
seu orgulho de ser um homem sulino, filho do Pampa! Tema que aduba as raízes
das suas mãos de Demiurgo.
CN
-
Sim, sou um Homem do Pampa, que está comigo na palavra, amor que no tempo há de
ter correspondência e já começa, pois é a terra que respiro e me respira.
(Diego Mendes Sousa e
Carlos Nejar, no “Esconderijo da Nuvem”, na Urca, no Rio de Janeiro)
P.S: Entrevista
realizada no Rio de Janeiro, na “Morada do Vento”, Flamengo, em 27 de maio de
2020.
Quando os ventos forem caminhos,
os ventos ventos forem sementes,
quando os cavalos forem moinhos,
e a noite negra for transparente,
quando os ventos forem caminhos,
quando os barcos forem poente,
quando os cavalos forem moinhos
moendo a noite tranquilamente,
quando os ventos forem caminhos,
a vida cheia de ventos
na vida feita semente,
moendo o jugo com seus dentes,
quando os ventos forem caminhos,
seremos ventos e ninhos,
sombras esguias, ventos moinhos,
moendo a noite nos seus caminhos.
(Trecho de “O campeador e o vento” de Carlos Nejar)
ENTREVISTA COM O ESCRITOR CARLOS NEJAR
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
23:44
Rating:
Valorizar a arte de um poeta é acreditar no poder fascinador da palavra...
ResponderExcluirNejar é dos maiores poetas e escritores do nosso tempo. Uma honra ter ido várias vezes a sua morada na Urca, participado de suas reuniões e compartilhado de suas ideias e de sua amizade. Parabéns ao Diego Mendes pela brilhante entrevista e pela inteligência e sensibilidade do entrevistado. É sempre muito importante saber um pouco mais sobre a vida de um escritor a quem tanto admiramos, como é o caso do grande Carlos Nejar. Felicitações aos dois poetas.
ResponderExcluirUma entrevista muito rica. Relevante ao universo literário.
ResponderExcluirConteúdo de significância esclarecedora aos apreciadores da arte lierária. Talento habilidoso e universal no grandioso acervo de Carlos Nejar.
"Até que o tempo desmonte a morte"(Carlos Nejar)
Saudações literárias ao Grande Diego Mendes Sousa.
GRANDES ALEGRIAS!
(SÉRGIO NUNES)
Entrevista maravilhosa. O entrevistador Diego debruçou-se com estudo dedicado sobre a vasta produção literária do grande poeta Carlos Nejar, que tudo pontuou com memórias e informações preciosas. A interação de ambos com a crítica e os colegas de ofício enriqueceu a entrevista com o desfile de toda uma geração histórica da literatura brasileira.
ResponderExcluir