JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA: A POESIA COMO REGRESSO AO TEMPO/TEMPLO DA INFÂNCIA
Jul
21. 2019. Por Maria de Lourdes Hortas*
José
Rodrigues de Paiva.
Foto:
Reprodução.
“Quão triste é o país ancestral que não saiba
localizar e reconhecer os talentos emergentes da sua diáspora.”
(Maria Beatriz Rocha Trindade)
No
Brasil muito se tem escrito sobre o desconhecimento, pela maioria dos leitores
brasileiros, inclusive eruditos, da literatura portuguesa contemporânea.
Paralelamente,
o mesmo ocorre em Portugal, com relação ao Brasil, com uma agravante: o
desconhecimento dos seus próprios conterrâneos. O que sabem os leitores
portugueses acerca de autores portugueses que, além-mar, escrevem sobre a sua
saudade e divulgam intensamente a cultura da sua pátria?
Num
recenseamento da cultura da diáspora portuguesa no Brasil, o nome de José
Rodrigues de Paiva será sempre imprescindível, quer como mestre em Literatura
Portuguesa e ensaísta, quer como poeta.
Natural
de Coimbra – 30 de outubro de 1945 – JRP vive no Recife desde 1951, para onde
veio acompanhando a família. Em 1969 diplomou-se em Direito, pela Universidade
Católica de Pernambuco. Em 1981, com a tese Mudança: Romance Limite, estudo
crítico da obra romanesca do escritor português Virgílio Ferreira obteve título
de Mestre em teoria literária pela Universidade Federal de Pernambuco.
Atualmente, no departamento de letras da mesma Universidade, é professor de
Literatura Portuguesa, presidente da Associação Jordão Emerenciano e diretor d
revista estudos Portugueses, editada pela referida entidade.
Poeta,
contista e ensaísta, com uma obra já vasta, de poesia publicou: Círculo do
Tempo, Memórias do Navegante,Vozes da Infância, Os frutos do silencio, Eros no
Verão e Cantigas de Amigo e de Amor.
O ensaísta
português António Quadros, no seu livro “Estruturas simbólicas do imaginário na
Literatura Portuguesa”, diz que “A grande literatura é sempre grande
experiência humana e grande consciência dessa experiência.” Por outro lado,
Gaston Bachelard, em Poética do Espaço, fala-nos da Casa como Universo,
estudando a dialética do exterior e do interior, detendo-se na topoanálise e no
cadastro dos campos perdidos.
Numa
leitura sistemática da poesia escrita por emigrantes portugueses residentes no Brasil,
venho encontrando esse cadastro dos campos perdidos referido por Bachelard. Tal
achado, todavia, não me surpreende. Apenas reafirma aquilo que, por experiência
própria, já havia constatado: a poesia de qualquer exilado ou emigrante, e não
só a poesia, mas qualquer peça literária, remeterá sempre, de alguma maneira, o
seu autor ao ponto de partida: a Casa da Infância, que se confunde com o Éden
perdido e se sobrepõe à prometida Canaã.
A
obra de José Rodrigues de Paiva pode ser considerada um arquétipo do fenômeno
acima referido. Nela se encontram, de forma transparente, os habituais
ingredientes da poesia escrita por poetas emigrantes, entre os quais me incluo.
Embora
esteja no Brasil desde os cinco anos de idade, e toda a sua formação
intelectual tenha sido brasileira, J. Rodrigues não foge à tradição da poesia
ibérica. Em sua obra detectam-se ecos de lirismo luso, inegável apelo às suas
raízes, acentuada e nostálgica reverência ao seu mundo inicial. Constatação que nos
devolve a Bachelard, quando questiona: Por que aposentos secretos, aposentos
desaparecidos, transformam-se em moradas para um passado inolvidável? O poeta
JRP nos responde:
Quando o sino da memória
Dobrar a tempos perdidos
E os dias todos ficarem
Nas lembranças esquecidos (...)
Outros sinos tocarão
Anunciando o final
De um tempo que é sepultado
Aos sons do gasto metal (...) in Memória/Círculo do Tempo, 1972.
No entanto, as lembranças evocadas pela poesia jamais correspondem à
realidade. Longe de serem fotográficas, são aquarelas
impressionistas, de onde o passado emerge com os tons da emoção que arquivou as
imagens selecionadas.
Quando, depois de duas décadas de ausência, o poeta regressou a Coimbra
pela primeira vez, ao reencontrar o chão pátrio, não reconhece mais
o mundo perdido da infância:
E neste ritmo, a vida se escoando
Anos de ausência vinte e um se foram,
E após tão longa espera retornamos
A colina coimbrã – sem capas negras,
Sem rouxinóis nas margens do Mondego,
Sem noturnos lamentos de guitarra. (Memórias do Navegante, 1976).
O prof. António
José Saraiva no seu livro “ A cultura
em Portugal” (V.1), ao analisar algumas feições persistentes da personalidade
cultural portuguesa, observa que
(...) para
definir os caracteres específicos de uma nação é indispensável compará-la com outras.
(...) Esta comparação só é possível quando conhecemos outras nações tão bem
como a nossa, o que raramente acontece. Isso porque normalmente uma pessoa
nasce e cria-se dentro de uma cultura nacional, e é a partir dela que aprende,
já numa outra fase do seu próprio desenvolvimento, as culturas alheias. Por
isso, a cultura própria e as alheias, não são comparáveis, a relação de uma e
das outras com a nossa subjetividade pessoal é diferente (...).
O raciocínio do Prof. António Saraiva é
compatível com o caso dos poetas emigrantes. Nestes, a poesia seria talvez a
química onde os vasos comunicantes da lembrança e da experiência se unem.
O caso de
José Rodrigues é exemplar. Mesmo tendo deixado o seu país muito cedo, já trazia
gravadas nos escaninhos da memória as impressões que determinariam as matrizes
da sua poesia.
Qualquer
crítico poderá garimpar na obra de Rodrigues os índices rasteados nas obras de
poetas portugueses emigrantes: a saudade, lugar comum porém complexo; a
mitificação das paisagens e da casa da infância; os signos históricos. Veja-se,
por exemplo, estre trecho de um poema do livro Vozes da Infância:
Aonde vais
meu rio, para que mar
Vão as
águas da vida deslizando
Entre as
sombras antigas das folhagens
Das árvores
onde a infância se escondeu?
Para onde
correm sem parar tuas águas constantes
Que oceanos
formarão ou que tormentas
Levantarão
um dia a marinhantes
Perdidos de
promontórios, entre as estrelas
Que lhes
servem de cartas e roteiros. (...)
Levas
sonhos da infância em tuas águas
Levas
risos, prantos, vozes, levas vidas
Deixadas
para trás num tempo findo
E o próprio
tempo levas (para onde?)
Fluindo
eternamente em tuas águas
Dispersas
cinzas de apagados fogos
Soltas ao
vento incerto dos caminhos.
Para que
mar, meu rio levam tuas águas
Instancias naufragadas,
cantos mortos
Envoltos em
silencio e véus de morte?
Em José
Rodrigues de Paiva, como na maioria dos poetas da diáspora, a nostalgia do
mundo perdido, universo mítico da infância, e a tentativa, através da palavra,
de reconstrução, ou recuperação desse longínquo e inacessível paraíso, veio
detonar a poesia que, por certo, já habitava o poeta.
Para ele, bem
como para muitos poetas em idênticas circunstâncias, a escrita, num primeiro
instante, aconteceu como veículo para a viagem de regresso: caravela
atravessando mares subterrâneos rumo ao perdido paraíso. Difícil é voltar dessa
jornada. Aprendidos os caminhos, a navegação se torna um fado, ou um destino.
Rodrigues não foi exceção ao eleger o Navegante como sujeito lírico. Em tom
épico, inventou os signos que lhe servem de motivo para o questionamento da
identidade bipartida. “À la recherche du temps perdue”, embarca na trajetória
poética, aparente rota de regresso ao passado , que o projeta no futuro – o tempo sem tempo da
poesia. Reinaugura assim um segundo mundo, redimensionado e transfigurado: no
amplo continente da linguagem poética as estações perdidas reflorescem.
Ao escrever
as Memórias do Navegante , JRP recria o mito do filho pródigo, no regresso à
casa paterna. Mas o tom épico, matizado por tons elegíacos e saudosistas, não
se limita ao lamento confessional. Como poeta culto que é, o Navegante passa o
Cabo Não, redescobrindo os grandes Adamastores da literatura clássica, de
Camões a Dante, de Shakespeare a Cervantes, de Rimbaud a Borges, de Drummond a
Pessoa. Desse modo, o que poderia ser uma simples evocação lírica, de valor
meramente sentimental e subjetivo, alcança um tom maior e mais amplo:
Nasceram muitas noites e manhãs
Nasceram dias curtos que ficaram
Perdidos entre as dobras dos papéis
No fundo da gaveta da memória
No celeiro do tempo onde se guardam
Sementes ressequidas do passado.
(Comunicação
apresentada no 11º Encontro de
Artistas e Intelectuais Portugueses do Brasil, realizado em Arganil, Portugal, nos dias 5 e 6 de junho
de 1997)
*Maria de Lourdes Hortas é poeta, escritora, ensaísta e artista
plástica.
JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA: A POESIA COMO REGRESSO AO TEMPO/TEMPLO DA INFÂNCIA
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
05:00
Rating:
Nenhum comentário