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“POESIA COMPLETA”, ALBERTO DA CUNHA MÉLO, PARTE II, OBRA INÉDITA



Por José Luiz Mélo



Img. Capa: divulgação






“Livros concluídos pelo poeta, que não sofreram quaisquer intervenções da organizadora, nem tiveram publicações anteriores de poemas ou partes, em livros ou outros veículos da mídia impressa.

A obra inédita imprime na Poesia Completa uma gama inolvidável do trabalho estilístico do autor, com os tercetos dos Salmos de Olinda (1998), e uma experiência intersemiótica única na obra do poeta, em Ficus-Benjamim do Parque 13 de Maio (2006).

Anota-se, ainda, o intimismo lavado de trabalhada ironia nos livros: Pequenas confissões (1991) e Crônicas de além-bar e outras prosas (2006), este, a última criação do poeta.”

“Poesia Completa”, Alberto da Cunha Mélo. Apresentação, página 36, Cláudia Cordeiro Tavares da Cunha Mélo, Organizadora.


CRÔNICAS DE ALÉM-BAR E OUTRAS PROSAS



TERMINAIS


A sala de doentes terminais,
candidatos à UTI,
tem doze leitos, todos ocupados.
Fui conhecê-la numa tarde de primavera,
fora do fútil horário das visitas.
Esperava encontrar um quase necrotério,
vazado pelos gemidos,
e fui surpreendido com altas conversas
e sorrisos, de vez em quando.
Todos estavam sedados, a dor repousava
às quatro da tarde daquela primavera.
Conversei algum tempo com Hugo,
que era aidético, já no fim,
e escondia uma guitarra debaixo da cama.
Não falou do passado, mas das manchetes
dos jornais do Sudeste, daquele dia:
O Iraque estraçalhado, o crime organizado, essas coisas,
preocupado com os eventos de um mundo
em que já não vive.
Eu esperava a cabeça baixa, o lamento
das coisas que iam deixando para trás,
mas ele riu de minha coleção de rugas,
da minha visita sem sentido
e daquele pacote de frutas.
Nada se sabe da reação de Hugo,
quando a morte arromba sua porta
e lhe entrega uma ordem de despejo.
A morada na terra tem seu prazo,
sob segredo de justiça,
na Vara dos Inquilinos Terminais.
Ao invés de ocupar-se com sua morte,
Hugo se agarra com palavras cruzadas.


SECRETARIA DA EDUCAÇÃO, 2006


A mesa da moça tem um jarrinho de avencas,
um pequeno globo terrestre,
uma microcalculadora, tudo de plástico.
Ah, numa bandeja de madeira, escrito despachar,
estão uns dez processos, já autorizados,
de melhorias salariais.
Estão ali julgados, para apenas serem implantados
pela moça atrás da mesa.
Alguns já estão amarelecidos
pelo longo tempo ali chegados.
Entre estes está o processo de Agápito.
funcionário velho, de câncer avançado.
Seu vergonhoso salário
estaria, de acordo com a Lei, aumentado em 50%
como foram os de seus colegas, há cinco anos.
Mas, a moça só implantará o aumento
se advogados e procuradores ameaçarem,
e Agápito não conhece esses homens.
Sua miséria engorda a autoridade da moça,
mesmo que ela nada saiba sobre ele.
Vocês estão diante do Mal a varejo,
do numeroso e onipresente mal,
nos balaios, nas prateleiras do dia a dia.
A gana do poder, de autoridade,
tem de ser saciado no próximo, dentro de casa,
na rua, no escritório, na oficina,
entre presos, nas celas, e entre mendigos nas pontes.
Agápito não tem mais força para lutar
contra o poder, contra a autoridade da moça,
cuja vontade nega o Direito a dez homens,
reduz em dez mesas a comida, e em dez camas o sossego.
O Mal não é um efeito especial de Guerra nas Estrelas.
O Mal tem a cara de uma moça atrás de uma mesa.

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