MIOLO DE POTE (Por Alexandre Furtado)
Por Alexandre Furtado
Foto: reprodução
... quem sabe um dia, minha alma servirá de abrigo ...
Em Eu sou trezentos, Mario
de Andrade retoma o tema da identidade, sinalizando, a partir de binômios
(sensações e repouso, Pirineus e Caiçaras...), para um ser constituído em
dualidades, ou, a julgar pelo título, em uma espécie de território múltiplo.
Nota-se no poema que o eu lírico aponta, em um dos últimos versos, para o dia
quando ele, com tantas referências, toparia consigo mesmo.
Paula Fábrio não me parece indicar cifras (300), mas, sim, uma viagem
que, na verdade, é feita de muitas. A leitura de Um dia toparei comigo sugeriu-me, em primeira análise, o reflexo de
Mario de Andrade, no desejo íntimo de (re)encontro, uma vontade profunda de se
enxergar, e, como não dizer, de se entender em uma arquitetura cerzida em
movimentos internos e externos, idas e vindas.
É um texto que exibe inequivocamente traços da chamada literatura de
viagem, portanto, interfaces geográficas e sentimentais, além de uma série de
marcas intertextuais visíveis, dispostas pelo olhar de uma narradora que se
desloca do presente ao passado, no Brasil e na Europa. Diz Isabel: “Viajar é
uma forma de sonhar. Também um modo de fugir. Um velho truque para ser outro.
Ou na verdade, para ser você mesmo” p. 11. Diferente de um diário, ou álbum de
fotografias, que, em geral, registram ambos, diversas imagens, datas e assuntos
sequenciados, o romance de Fábrio talvez siga uma linha semelhante, mas reza
mesmo por outra cartilha: a das imprecisões, a das dúvidas constantes acerca do
tempo e das escolhas.
Isto posto, uma suspeita minha: não seria a errância da narradora, de
alguma maneira, extensão da própria literatura, no que se derrama sobre a
matéria da vida e nos faz pensar sobre nós mesmos? Para mim, tal a viagem, que
é feita de várias, essa suposição sobre a obra prenuncia uma leitura de muitas
outras, e nelas uma discreta promiscuidade, no sentido de negação das fronteiras
demarcadas. Então, os limites, borrados circunstancialmente, tornam-se mais
nítidos ao leitor quando avança no livro, e, daí, a impressão de que as
descrições, diálogos ou pensamentos de alguns personagens acompanham pari passu
os da própria narradora. É como se a narrativa imprimisse um ritmo de viagem a
cada página.
Segundo a autora, Um dia toparei
comigo foi escrito, enquanto exaurida, revisava seu primeiro romance
intitulado Desnorteio. Assim é posto
na coluna Bastidores do Suplemento Pernambuco – outubro de 2015, p.3. Também,
no mesmo texto encontramos a informação de que durante certa oficina de
encadernação em São Paulo, surgiu uma oferta – proposta por Dona Helena, a de
fazer uma encadernação aos moldes antigos de um álbum de viagem. Entretanto, a
reboque, uma sugestão inusitada da própria senhora à autora: “Por que você não escreve legendas para as
fotografias?”
Fisgada, ou provocada - assim me deu a impressão, Fábrio seguiu impulso da escrita, e dele – como fôlego, uma narrativa a partir de
fotos, lembranças e histórias reais de família. Surge, nesse processo, uma narradora em “timbre
afetado”, como diz a Paula, falando de suas impressões acerca de pessoas,
cidades e países diferentes. Curiosamente, sobre o processo de escrita, é
comentado por ela no Suplemento Pernambuco: “Revi minhas anotações e
conjecturei. Poderia escrever um romance que mesclasse as paisagens visitadas
aos livros que haviam me impressionado durante a vida ou, simplesmente, que
tivessem para mim uma relação afetiva com aqueles lugares.” E é bom dizer que
não são poucas as referências: Hemingway – Paris
é uma festa, Gogol – Almas mortas, Julio Ramon Ribeyro – Só para fumantes, Cervantes, D. Quixote, Hesse – O lobo da estepe, Rubens Figueiredo – O passageiro sem fim - Elio Vittorini – Conversa na Sicília, Mariana Ianelli – Fazer silêncio, Borges – O livro dos seres imaginados, valter
hugo mãe – a máquina de fazer espanhóis;
todos expostos em nota esclarecedora da editora ao final do livro.
Para mim, não há como deixar de trazer Gullivers travels, de Swift; e suas quatro viagens fantásticas às
ilhas de Lilliput, Brobdingnag, Laputa e Terra dos Houynhms, e Duas viagens ao
Brasil, de Hans Staden, que soube depois, ter sido um sucesso editorial
traduzido para vários idiomas. Escrito durante a estadia do alemão em terras
brasileiras, confesso que, durante sua leitura, sempre me impressionava as
descrições feitas por ele sobre o Brasil, igualmente, sua vida entre os
Tupinambás.
Por Sterne, Uma viagem
sentimental, cujo narrador Parson Yorick, apaixonado pelas paisagens e
mulheres francesas, entrelaça as opiniões mais interessantes do que vê e a
subjetividade da vida. Não me esqueço de As vozes de Marrakesh (Elias Canetti –
o mesmo da epígrafe), On the road,
clássico beatnik, e Paul Bowles, The
sheltering sky, onde a literatura encarna a viagem em seu lado mais cênico,
o texto como palco para o entrecruzamento estético e cultural. Ali, existe uma
poética de errância, e despojamento.
Como bem coloca João Carrascoza, “No vértice de sua escritura, Paula
nos lembra que a leitura é também um deslocamento.” Não há como discordar. E,
por isso, me pergunto, se alguns escritores, uns mais que outros, no fundo
carecem eventualmente de um deslocamento físico para – enquanto fonte por onde
brotam palavras e imagens, entrar em contato consigo mesmos, e com a
(in)suportável dimensão do real.
Sobre isso, sempre chegam exemplos como os de Hemingway, Youcenar,
Maughan, Lispector, Guimarães Rosa entre outros; e, também, a impressão de que
cumprem um destino inevitável, o de alguém cuja escritura ganha a cada viagem
um corpo, com respiração e estrutura próprias, capaz de gerar um produto tão
vivo e atado ao processo criativo, que ficaria difícil ao final separar
qualquer palavra da própria errância.
Do que é apresentado aos poucos por Isabel, a protagonista, sejam as
instâncias mais sensíveis de suas fantasias, sejam os seus desejos mais
latentes, o leitor conhece do enredo a partir do que parece ser, na verdade,
uma grande viagem pessoal. Isabel viaja e percorre a vida como se estivesse
revendo a si mesma. Sua voz sinaliza para uma pluralidade de pessoas, de tempos
(presente e passado) e uma espécie de poli-espaço (ora aberto, ora fechado),
distribuído em apartamentos, hotéis, praias e paisagens de países variados.
Então, a princípio, duas mulheres, que se amam, viajam à Europa. Na
Espanha, encontram uma antiga amiga, do Festival da Canção em Boa Esperança.
Consuelo, sensual e sedutora, mora em Madrid e tem um amante chamado Leon,
desempregado. Ainda, Luiz, que habita nos arrabaldes da capital espanhola, com
seu tio Ramires, velho e doente.
A morte do pai de Isabel costura partes da obra, bem como binômios:
velhice e escolhas, memória e esquecimento, sonhos e realidade. Por Toledo,
Madrid, Barcelona e Paris, os personagens refletem (des)amores, suas dúvidas e
fraquezas.
Diz a narradora observando Virgínia, sua amada, e Luis, os movimentos
da vida: “O que seria a vida sem tabu? A proibição nos dando comichão, àqueles
que gostam de pensar. E desobedecer. Somente às vezes. Percebe-se livre,
escapulindo da fôrma em que te assentaram.”p.73. Entre eles olhares.
Possibilidades, poliamores. A vida que se abre...
Um dia toparei comigo se insinua às vezes inconcluso, para o leitor
desatento, mas é apenas impressão. Como Lembra oportunamente Micheliny
Verunschk em sua apresentação, falando de Kierkegaard:
O filósofo dinamarquês adverte que contemporâneo de si mesmo é aquele
que, ao se dirigir ao futuro, faz como o remador em sua barca: rema de costas
para o seu objetivo e assim, de costas apreendendo o que está ao seu redor, se
coloca cada vez mais perto de onde quer chegar.
Então, você vai topando, pelas mãos da narradora, com frases
inusitadas, verdades já ditas, intuições que oscilam entre o balanço entre os
motivos da viagem e as doenças de Ramires.
Isabel parece se revisar, e se dirigir dessa forma ao amanhã.
Interrogações a acompanham. Sobre a arte de “viajar”, de saber perder – recuperando
Elizabeth Bishop, finalmente, sobre uma pergunta: como dar à vida e ao amor
outros moldes possíveis?
Boa leitura!
Paula Fábrio formou-se em Comunicação Social pela Faap, e é mestre em Letras, pela
USP. Nasceu em São Paulo, trabalhou em publicidade e foi livreira (Rato de
Livraria). Publicou seu primeiro romance Desnorteio (Ed. Patuá), vencedor do
Prêmio São Paulo, 2013, como melhor livro do ano, na categoria estreante com
mais de 40 anos, e Um dia toparei comigo (Ed. Foz,2015), pela bolsa de criação
literárias ProAC.
MIOLO DE POTE (Por Alexandre Furtado)
Reviewed by Natanael Lima Jr
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