Livros bons e livros ruins – como é isso mesmo?
por Felipe Lindoso*
Img: Reprodução
A distinção
entre livros bons e livros ruins é algo que assombra o sentido comum. Afinal,
cada um de nós qualifica o que lê (ou o que quer ou não ler) dessa maneira. É
um bom livro (e por isso gostei dele), ou é um livro ruim (portanto, detestei).
Fazemos isso todos os dias (e não só a respeito de livros, é claro), e esse
exercício de distinção passa pela crítica, pelas resenhas de jornais e,
certamente, pela avaliação das editoras que decidem publicar ou não determinado
original.
O assunto
desborda das escolhas individuais (ou empresariais) até para o terreno das
políticas de aquisição de acervos para bibliotecas públicas. Há quem defenda
que só devem ser colocados à disposição dos leitores não apenas livros bons,
mas os que “transformem” o leitor em um ser humano melhor.
Pierre
Bourdieu, em seus estudos de sociologia, elaborou alguns conceitos que nos
podem ser úteis. O sociólogo francês assinala que as avaliações de qualidade –
ou aquilo que sua discípula Pascale Casanova viria a chamar de “capital
literário” – depende de relações internas no campo da crítica, e da produção
literária, no caso da que se considera culta. As disputas de poder no campo
literário adquirem uma dinâmica própria, que leva a sucessivas transformações
na escala de valores do que é considerado “bom”, “inovador”, “medíocre” ou de
“mau-gosto” e assim sucessivamente.
Essas
disputas dentro de campos podem muito bem ser – e de fato são – interpoladas
com o que acontece em outros campos. Por exemplo, os livros que os pedagogos
podem levar em alta consideração (no campo da pedagogia, ou como úteis para o
ensino de literatura, por exemplo), podem não ser idênticos aos que os críticos
literários talvez valorizem. Livros que esses consideram inovadores, ou que
apontam para caminhos promissoramente transgressores (com um sinal positivo
nessa transgressão), podem ser considerados nocivos pelos pedagogos.
O mundo dos
livros, já disse alguém, é um reflexo do mundo real. Quase tudo, as
contradições, as valorizações e avaliações que se manifestam no jogo social, se
refletem de alguma maneira no mundo dos livros. Por conseguinte, isso faz com
que as avaliações também reflitam isso de certa maneira. E os exemplos podem
ser vários e ilustrativos: a avaliação de um livro da área STM
(técnico-científico e de medicina) obviamente não tem nada a ver com a
avaliação literária. Os livros religiosos, por sua vez, podem ocupar uma gama
extensa de situações e avaliações, já que podem ser simplesmente apologéticos
ou peças de “alta literatura” poética. Nesse caso, a avaliação que um católico
carismático faz dos livros do Pe. Marcelo Rossi não vai bater com a que
eventualmente for feita por um crítico literário.
Mas não
quero enveredar por um relativismo absoluto, o que faria lembrar um bordão dos
anos sessenta (o “tudo é relativo”). Pois a questão é: relativo a quê? E
entender que essas escalas de valores se formam não por imperativos estéticos
(literários) absolutos, mas são fruto de disputas entre os que participam
do campo literário (ou do religioso, do pedagógico, do científico, e assim por
diante).
O perigo de
se esquecer disso é quando a questão se transfere para o âmbito das políticas
públicas de promoção da leitura e, em particular, da constituição de acervos
para as bibliotecas públicas.
Os que eu
chamo de “leiturólogos”, no sentido de pessoas que acham que nas bibliotecas só
devem estar os livros transformadores da visão de mundo dos leitores, se imbuem
dessa missão e querem excluir os livros que não se enquadrem no que eles acham
que corresponde a essa “missão civilizatória”.
Ora, quando
se examina a história das bibliotecas públicas modernas (que nascem na
Inglaterra e nos Estados Unidos no século XIX), vemos que os fundadores dos
sistemas de bibliotecas tinham dois objetivos. O primeiro, de certa forma,
corresponde a essa visão moralizadora e de “transformação moral” dos leitores.
Particularmente dos leitores operários, aos quais se destinavam as primeiras
bibliotecas públicas. As bibliotecas particulares e universitárias, obviamente,
estavam fora desse escopo limitador. Mas aquelas destinadas ao povão tinham
esse lado moralista, certamente.
Mas também
foram construídas com outros objetivos. Um deles era subsidiariamente político:
a crença de que o aperfeiçoamento profissional faria as pessoas progredirem
material e socialmente. Mas, para isso, as bibliotecas deveriam ser
“universidades livres”, o locus onde as pessoas, particularmente
os operários, podiam adquirir livremente conhecimentos.
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Não era uma
ideia nova. A obra de Diderot e d’Alembert, lembremos, tinha como título Encyclopédie,
ou dictionnaire raisonné dês sciences, des arts et des métiers. Ou seja, dicionário
arrazoado das ciências, das artes e dos ofícios. E é fascinante ver as
reproduções fac-símiles que se encontram espalhadas pela web, mostrando e
ensinando inclusive o processo de fabricação de objetos manufaturados e as
ferramentas utilizadas.
Os sistemas
de classificação, como o de Dewey, nasceram com o objetivo prático de ajudar os
consulentes das bibliotecas a achar o que lhes interessava aprender. Por isso
mesmo, não se restringem à literatura, e muito menos ao que qualquer um possa
qualificar como “bom livro”: a classificação abrange todas as áreas
de conhecimento.
É bom
lembrar também que as bibliotecas públicas são financiadas pelos impostos, e o
cidadão que os paga tem o direito de ter acesso ao que quiser, e não apenas
àquilo que seja selecionado por quem se arroga o direito de decidir o que ele
pode ou não ler.
A formação
de acervos para bibliotecas públicas e os programas de incentivo à leitura
devem, portanto, se equilibrar entre as limitações de espaço para os acervos
(um condicionante óbvio: a biblioteca universal é um sistema de bibliotecas, e
não uma biblioteca em particular), o desejo do usuário e a ajuda para que este
amplie seu universo de leituras, sem jamais depreciar arrogantemente o que ele
deseja ler.
Fonte: Artigo extraído do site Publishnews – 02/06/13
*Felipe Lindoso é
jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e
leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro
e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e
Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país
de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus
Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br
Livros bons e livros ruins – como é isso mesmo?
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
09:38
Rating:
Muito boa matéria do escritor Felipe Lindoso.
ResponderExcluirNatanael Lima Jr
Parabéns ao Domingo com poesia pelas lindas mudanças de layout mantendo o alto nível de qualidade em beleza e conteúdo.
ResponderExcluirbeijos a todos os editores.
Joelma
Joelma, boa noite
ExcluirEstamos sempre trabalhando para melhorar nossa relação com nossos leitores. Que bom que você gostou. Obrigado.
Frederico Spencer
Editor de Texto
Agradecemos Joelma sua visita e seu comentário. Estamos trabalhando sério para oferecer uma página cada vez mais atrativa.
ExcluirNatanael Lima Jr
Editor