PAISAGENS POÉTICAS DE DÉCIO TORRES CRUZ
Postado
por DCP em 02/08/2023
Paisagem
Evanescente*
E
lá estávamos nós, eu e o meu irmão,
em
meio a ruínas de nossa infância.
Não
havia mais a casa nos alicerces.
Apenas
a árvore que nosso pai plantara
e
o vento silvando pelas folhas eram os mesmos,
e
não eram os mesmos.
“Venham
brincar comigo, meus meninos!”
A
árvore parecia sussurrar por suas beiras,
mas
estávamos grandes demais para seus galhos
e
tínhamos desaprendido nossas brincadeiras.
Descemos
até o rio onde costumávamos nadar.
“Cadê
a colina que subíamos antes de chegar ao rio?”
Perguntei
sem me dar conta que a colina era o montinho
embaixo
dos meus pés cansados de andar.
Tirei
fotos e me lembrei de quando via as coisas pela primeira vez
através
de olhos pequeninos que ampliavam paisagens.
O
rio era agora um riachinho seco,
e
se recusava a caber no tamanho da minha memória,
transformando
as minhas lembranças em visagens.
Eu
disse: “Engraçado como as coisas mudam!”
“Ou
somos nós?”, respondeu meu irmão.
Vi
um arco-íris nos cristais que escorriam pelo seu rosto
e
alimentavam a sede daquele chão
enquanto
ele fitava um horizonte igualmente esturricado.
A
estrada se encompridou,
o
silêncio pousou sobre nossos ombros,
e
cabisbaixos percorremos o caminho de volta à cidade.
As
fotos que tirei nunca revelaram, naquela lente,
os
retratos da minha mente.
*Publicado
em: CRUZ, Décio Torres. Paisagens interiores. São Paulo: Patuá, 2021.
O
Outro
A Ítalo Calvino.
Se
numa noite de inverno
teu
olhar ficar grudado a uma máquina
destruidora
do silêncio
em
um espaço sem sombras
que
entorna música,
Se
num dia de verão
a
parede da escuridão te fizer fronteira
revelando
um “você” mais estranho que o seu
como
um viajante que perdeu uma conexão
e
jaz inerte no cemitério das horas perdidas,
Se
numa noite estrelada
ansiares
por nadar contra a corrente do tempo
fingindo
apagar as consequências de certos momentos
tentando
recuperar uma condição inicial
que
te levou a partir,
Descobrirás
uma
torrente de novos acontecimentos
quanto
mais te afastares do momento zero,
pois
não conseguimos amar ou pensar,
exceto
em fragmentos de tempo
que
ao serem atirados ao vento
percorrem
sua própria trajetória
e
imediatamente desaparecem.
Se
um dia você
se
encontrar perdido em uma terra estranha
onde
uma estação de trem é o único ponto de contato
com
o resto do mundo
saberá
que você
parou
os relógios
e
reverteu o tempo.
Então,
e
somente então,
serás
capaz de encontrar o outro “você” deixado para trás
Ele
virá com um sorriso matreiro sobre o rosto
te
fará um aceno
e
passará.
Pela
primeira vez
em
tua vida fugidia
te
sentirás sozinho
enquanto
a imagem daquilo que uma vez te constituiu
vai
embora, fugindo de ti.
Se
numa tarde de outono você chorar,
é
a lembrança do você que ficou para trás
em
uma cidade invisível.
Rituais*
Marie
olha para o espelho e vê um fantasma
Não,
não é ela por trás dos olhos azuis
Alguém
se apoderou de seu corpo e plasma
e
a vestiu com aqueles segredos e lágrimas de blues.
Ela
maquia seu rosto para esconder seus medos
e
olha para o lugar onde um coração costumava bater enredos
A
pobre coisa sofredora não está mais sendo incomodada em vão.
Ela
se tornou a rainha de suas emoções traquinas
Livre,
finalmente, de histórias de amor de segunda mão
repetidas
todos os dias em “queridas” colunas femininas.
Lá
vai ela, à procura das alegrias das noites marinhas
cansada
de medir-se nos olhos de outra pessoa.
Depois
de umas cervejas, conversas vazias e mentirinhas
a
mesmice do bar se projeta na luz e nas paredes ressoa.
E
cansada ela retorna, ainda faltando algo, como uma cicatriz
Entra
em seu quarto e liga a TV
“Como
ficaria linda no vestido daquela atriz!”
Queria
ser aquela mulher se ainda pudesse ela mesma ser
mas
a impossibilidade das realidades no humor do modo subjuntivo
a
deixa mal humorada, e remotamente controlada, sem se conter
apaga
a imagem na tela num gesto compulsivo.
Flashes
de anos adolescentes invadem seus pensamentos sobre mundos de simulacros.
Ela
tinha se esquecido das aparências de outrora
Nenhuma
mudança perceptível ocorreu em sua alma ou em seus ritos sacros
Só
o seu corpo se recusa a notar o fato e a nova aurora.
Ela
cai num sono de nostalgia secular
e
sonha com um reino à beira-mar.
*CRUZ,
Décio. Paisagens interiores. São Paulo: Patuá, 2021.Estes dois poemas foram originalmente escritos em
inglês para
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Décio Torres Cruz é escritor,
crítico literário, poeta, pesquisador e professor aposentado da UFBA e da UNEB.
Foi eleito recentemente para ocupar a cadeira 19 da Academia de Letras da Bahia
e a cadeira 2 da Academia Contemporânea de Letras de São Paulo. Ex-bolsista da
Fulbright, obteve seu Ph.D. em Literatura Comparada na State University of New
York (SUNY) em Buffalo, EUA. É mestre em Teoria da Literatura, especialista em
Tradução e bacharel em Letras/Língua Estrangeira, com concentração em língua e
literaturas de língua inglesa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Fez
pesquisa pós-doutoral sobre as adaptações de Shakespeare para o cinema na Leeds
Metropolitan University, Inglaterra.
É autor dos livros: O mistério do caderno antigo (inédito), A
poesia da matemática (inédito), Histórias roubadas (Guaratinguetá:
Penalux, 2022), Paisagens interiores (São Paulo: Patuá, 2021), The
Cinematic Novel and Postmodern Pop Fiction (Amsterdã; Filadélfia: John
Benjamins, 2019, parte da série da Fédération Internationale des Langues et
Littératures Modernes (FILLM) da Unesco); Literatura (pós-colonial) caribenha
de língua inglesa (Salvador: Edufba, 2016); Postmodern Metanarratives:
Blade Runner and literature in the age of image (London; New York: Palgrave
Macmillan, 2014); English Online: Inglês instrumental para informática
(São Paulo: Disal, 2013); O pop: literatura, mídia & outras artes
(Salvador: Quarteto/Uneb, 2003; 2013); Idea Factory: 100 Games and Fun
Activities for your English Classes (Salvador: Edufba, 2012; 2013); Inglês
para Administração e Economia (São Paulo: Disal, 2007); Inglês para Turismo
e Hotelaria (São Paulo: Disal, 2005); e Inglês.com.textos para
informática (São Paulo: Disal, 2003).
Além desses livros, publicou poemas, contos, traduções e dezenas de
artigos e capítulos de livros em português e em inglês nas áreas de estudos de
adaptação, análise do discurso, comunicação, estudos comparados de literatura e
cinema, estudos culturais, estudos pós-coloniais, estudos shakespearianos,
linguística aplicada, língua inglesa e portuguesa, literatura brasileira e
portuguesa, literaturas de língua inglesa, metodologia do ensino de inglês,
metodologia da pesquisa, teoria literária e tradução.
Foi vencedor do concurso de crônicas Um rolê pelo Rio da Cátedra
Unesco de Leitura do Instituto Interdisciplinar de Leitura da PUC-Rio.
Recentemente, dois de seus contos inéditos foram publicados em diferentes
livros: “Premonição, segundo Lucas” foi selecionado para fazer parte da
antologia Todos os Saramagos (Belo Horizonte: Páginas Editora, 2022) e
“Vingança” compõe a antologia Casa Gueto: Paraty 2022 (São Paulo: Patuá,
2022) lançada na 20ª. FLIP.
Já atuou como tradutor, intérprete, professor e coordenador de cursos e
de atividades culturais de vários institutos de idiomas da Bahia e do Rio de
Janeiro. Possui também experiência como ator amador e diretor teatral, tendo
dirigido e participado de diversas peças no Brasil e nos Estados Unidos. É
pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA,
membro do conselho editorial de várias revistas acadêmicas, e avaliador de
cursos e instituições de ensino superior para o MEC/INEP.
e-mail: deciotc@ufba.br
Telefones: Celular: (71) 99188-4102 / Fixo: (71)
3264-0865
Décio Torres é um autor eclético que sempre nos brinda com poesias e textos primorosas, desde a prosa ao cinema. Um lídimo representante da vestuário Academia de Letras da Bahia. Homem das terras junquenses, conhece cada palmo daquele chão e o viver e dizer do sei povo. Meus respeitos, professor Décio🤜🤛
ResponderExcluirO corretor me traiu feio: onde se lê 'vestuário' leia-se vestuta
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