MIRÓ DA MURIBECA, DA POESIA MARGINAL DO RECIFE
Republicado por DCP em 26|06|2022
Publicado
por Vermelho em 20|05|2022
Por
Urariano Mota*
Miró fala de um mundo abaixo do nível do auditório. O primeiro elemento
cômico é que a miséria é cômica
Acabo de ler um apelo que pede contribuições para
Miró da Muribeca, que se encontra hospitalizado:
“Seguimos no
cuidado de Miró da Muribeca. Todo apoio é bem-vindo para garantir a rede de
suporte de cuidadores. Também aceitamos doações de luvas e máscaras. #VivaMiró
para doação
direta:
JOAO FLÁVIO
CORDEIRO DA SILVA
CAIXA
AG 0050
CC 37563-3
CPF
341.126.264-87 (também é a chave de pix)”
Então este é o momento, para que todos
saibam o valor humano e literário do poeta que se encontra hospitalizado à
espera de doações. Quem é Miró da Muribeca? Ele é um dos homenageados em nosso
Dicionário Amoroso do Recife, do qual copio os trechos a seguir.
“Em um mundo globalizado conforme a
ótica WASP, Miró é um acúmulo de surpresas. Pois imaginem as senhoras ladies e
os senhores gentlemen que ele é um poeta que jamais entrou na universidade.
Pelo menos, para assistir a lições como estudante universitário, nunca. E,
continuem a imaginar, isso não lhe faz nenhuma falta, devíamos mesmo dizer,
para a sua poesia é um bem, porque lê e se educa em obediência a uma ordem que
não está no currículo de um currículo estéril. A quem não o conhece, a sua
pessoa física reserva uma grata e grada graça: Miró tem a pele escura, e, ladies
and gentlemen, não finjam, por favor, naturalidade. Mesmo em um povo
mestiço, Miró é uma exceção: as pessoas sensíveis, até mesmo no Brasil, têm uma
estranha gradação na cor da pele da sensibilidade. Quanto mais claros, mais
poetas. Quanto mais escuros, mais trabalhadores braçais, ou, se forem artistas,
mais jogadores de futebol. Daí que faz sentido o nome artístico do poeta Miró
vir de Mirobaldo, o craque do Santa Cruz Futebol Clube. Mas a melhor surpresa
de Miró vem da sua poesia. Acompanhem-nos, por favor, assim como o acompanhamos
em um auditório.
Onde Ascenso Ferreira realizava ao
recitar um uso extraordinário da voz, da modulação ao acento, do corte da
sílaba à ênfase, como dizê-lo? Uma utilização da voz como um ator de rádio,
Miró usa a imagem, física, melhor dizendo, ele usa o próprio corpo, ele faz
evoluções pelo auditório, como um cantor de rap, quase diríamos. Mas sem
microfone. E não só. Ele acrescenta caretas, esbugalha os olhos, fecha-os, e
aponta os seus versos com um dedo contra a assistência. Como um Tio Sam
invertido, que em vez de conclamar um alistamento, nos enfiasse a realidade
cara a dentro.
A plateia, divertida, sorri, gargalha, diante de
versos que não chegam a ser bem cômicos. Como aqui:
‘Tinha lido
num livro de autoajuda, de um
desses
psicólogos
De araque,
que aparecem nesses
programas
matinais que dão
Receitas pra
tudo, inclusive de bolo,
Que na hora
que a vida vira uma merda
O melhor é
sair da fossa’.
Ou nestes versos:
‘Acho que
foi a primeira vez que conheci a dorUm domingo de 1971
Naquele
tempo o domingo era o dia mais feliz,
Minha mãe
fazia um macarrão com carne de
lata e
Q-suco
Ficávamos
brincando de mostrar a língua vermelha
Pra provar
que éramos felizes…
Norma era
tão linda com seus cabelos negros,
Que me deu
um branco aos 11 anos
Quando me
pediu um biscoito maizena e um
gole de
fratele vita …
Domingo era
o dia mais feliz
Antes de
Norma beijar um outro na boca.’
A plateia, o distinto público, vai ao delírio. De
rir, de gargalhar. Miró fala de um mundo abaixo do nível do auditório. O
primeiro elemento cômico é que a miséria é cômica. A maior comicidade é a
desgraça que não sentimos na própria pele. A dor que não é a nossa, a dor pela
qual não temos empatia, ah, ladies and gentlemen, como é cômica. Não
iremos consultar nada agora, mas em algum lugar deve estar observado que o riso
é manifestação pela desgraça alheia. O riso atesta a nossa superioridade ante o
ridículo que não nos alcança. Quem jamais bebeu ‘sucos’ em pacotinhos de pó, de
‘morango’, de ‘uva’, com bastante açúcar e gelo, como bebem os que não podem
comprar frutas em um país tropical, acha isso irresistivelmente cômico. Quem
jamais saboreou carne enlatada no país de maior rebanho bovino do mundo, quem
jamais pôde sentir o sabor, o gosto e a maravilha da carne Swift, da carne da
Wilson, com macarrão rubro de colorau aos domingos, que piada genial é esse
macarrão se transformar no dia da felicidade. E aquela prova de amor, da
cumplicidade que tem o amor, quando a musa pede refrigerante, guaraná da
frattelli vita, com o biscoito miserável de maisena. Que cara! E Norma beija um
outro, mirem o detalhe, na boca! na boca! Menos, por favor, você é demais,
cara!
O poeta gira em torno da assistência. A sua arma, a
sua graça e cômico é a verdade. Aquelas coisas mínimas, constrangedoras, que
nem às paredes confessamos, ele, como um novo louco, arrebenta de si. Mais do
que escrever por vezes transcreve. Com uma sensibilidade que observa o
inobservável.
‘Já perceberam como tem pontas de
cigarro em
pontos de ônibus?
Tem uma tese
de um amigo que diz:
Que as
empresas de ônibus são
responsáveis
por 5% dos cânceres de pulmão.
Curioso
perguntei, como assim?
É que os
ônibus demoram’.
A recepção da plateia a essas coisas é vê-las
apenas como o lado sujo, trash, de uma estética suja e trash, de
um maluco que escreve e não tem nenhuma vergonha de escrever sobre essa miséria
como um bárbaro sem educação. (Nós, os cultos. Nós, os que, se algum dia fomos
dessa desgraça, bem que a superamos. Nós, os de outro mundo. Nós, os pretensos
limpos, clean, e educados.) O poeta gira, e deixa a aparência, como um
bom gira, de fazer também uma rotação. Então ele declama, recita, pula,
contorce-se, cospe e pragueja uns versos que a expectativa do distinto e
cultíssimo público não percebe. O clima em torno da sua performance não permite
a degustação, a permanência que tem a beleza, a que sempre por necessidade
voltamos. Então ele fala, enquanto o público espera dar mais uma risada, então
ele faz uma prece, um poema que somente hoje pela manhã pudemos sentir, ao ler
e mastigar, e ruminar como as cabras mastigam e ruminam uma erva muito amarga.
Este poema não precisa do poeta, da sua pessoa. Basta uma sensibilidade.
‘Deus, Tu que agora carregas um homem,
Puxando
pelas rédeas o seu cavalo e uns
sacos de
cimento
De cada lado
um sol insuportável …
Deus,
Choves agora
no meu coração
Para que eu
não pense em comprar um
guarda-chuvas de balas
E fazer
justiça com as próprias mãos.’
Nos mais recentes dias doente, internado em uma
clínica, ele falou ao poeta Valmir Jordão estes versos de improviso:
“Para mim, Deus lavou as mãos
Eu só não
sei com que sabão”
Este é o gênio de Miró da Muribeca.
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