A MENINA (DO SOBRADO) QUE ROUBAVA FLORES
Postado por DCP em 22|05|2022
Por Marcus Prado*
*Artigo publicado em 19|05|2022, no Caderno Opinião (Diario de Pernambuco). Autorizado pelo autor a sua publicação.
Não há um só detalhe da crônica Cem anos de perdão, de
Clarice Lispector, do livro Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco,
1998, que não seja de suprema construção literária e de inspiração poética, há
uma hierarquia de começo, meio e fim (como deve ser a grande arte do cronista),
um texto, impregnado de ânimo e beleza, que pede ao leitor envolvimento, eis o
segredo da obra de arte. A autora alcança, nas pequenas narrativas, aquilo que
Suzan Sontag (ela que é também mestríssima no campo da Fotografia), chama de
elementos estruturais bem desenvolvidos. Dentro de um sistema orgânico, digo
eu, singularíssimo, unitário, traço mais prontamente cativante e coeso, de
significados e significantes verbais – e tal propósito é plenamente logrado na
sua obra de ficção.
Nessa
crônica ela retrata uma faceta da mulher quando menina, que ficava encantada ao
passar por uma casa e seu jardim, algo para ela inacessível, filha de um
pequeno vendedor ambulante, vindo de longe, e de uma mãe há muito sofrendo
aquele tipo de dor sem esperança de cura. O jardim e o canteiro de flores são
temas medievais, um dos motivos favoritos de todas as escolas de pinturas do
século 15, não apenas na Itália, mas em todo o Ocidente. O caráter abstrato dos
jardins não perde de foco na ficção clariciana. (Clarice saberia mais tarde que
estava pisando num solo pernambucano recordista brasileiro de flores tropicais;
num chão que seria berço de um jardim, o da Praça de Casa Forte, marco inicial
e pioneiro de uma nova concepção estética de jardins públicos, com a marca de
Burle Marx. O filho da pernambucana
Cecilia, de quem Clarice se tornaria amiga).
Não
demoraria muito para Clarice ser vista entre os maiores cronistas brasileiros
do seu tempo, ao lado de Lima Barreto, João do Rio, Cecília Meireles, Carlos
Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Rubem Braga, Nelson Rodrigues. Paulo
Mendes de Campos, Fernando Sabino, Vinicius de Moraes. Na verdade, a
ucrano-pernambucana Clarice Lispector é da boa e nobre linhagem de Machado de
Assis. Quando se trata do tema crônica brasileira, é quase instantâneo pensar
no nome de Clarice, ninguém a supera. E é hoje amplamente traduzida e
divulgada, o que faz com que seja colocada pela crítica ao lado de autores como
Virginia Woolf, Kafka e Katherine Mansfield.
Pessoalmente,
um tanto maravilhada, ela gostava de roubar flores vermelhas, as flores que
fizeram o encanto da vida e da obra do mais famoso jardineiro-paisagista do seu
tempo, não só brasileiro, Roberto Burle Marx. Por causa das flores vermelhas,
que plantava nos jardins do Recife, e porque tinha Marx no sobrenome, passou a
ser visto no Instituto Arqueológico Pernambucano, leia-se Mário Melo, como
comunista). Algo me diz que aquelas flores nunca saíram da memória de Clarice,
dos anos mais felizes de sua vida, ela dizia isso numa outra crônica sobre o
Recife e Olinda. O sobrado não tinha jardim, era como um daqueles vistos por
Nelson Saldanha no clássico O jardim e a praça: ensaio sobre o lado “privado” e
o lado “público” da vida social e histórica. Mas, havia um copo d`água na
janela de frente, onde a flor ficava à vista de todos, soberana, e o jardim da
praça, hoje invadido por sem moradias, era como parte imaginária, embora
integrante, do quintal do sobrado. Portanto, a Praça Maciel Pinheiro e o
Jardim, sem falar da fonte luminosa e suas figuras da mitologia grega, faziam
parte dos devaneios da menina que amava os livros e as flores.
No
condomínio olindense onde moro há um grande jardim de flores vermelhas adotado
por minha mulher, a senhora Maria de Lourdes, é uma paixão dividida com
Ricardo, nosso neto. Da varanda, tomada
por muitas flores, vemos uma vez por semana uma cena que faz lembrar a doce
menina do sobrado. Ela chega de mansinho, suspende o tempo acelerado do coração,
prende a respiração como um tigre anfíbio de olho na caça matinal, como quem
acaricia um gato ou um passarinho, (pouco importa se o vento espalha os cabelos
e deixa suas tranças desarrumadas), suas mãos ficam flutuando como uma nuvem
encapsulada no firmamento, quando de repente, agora como um raio, dá o lance
almejado na flor que ainda outro dia floresceu na sua ensolarada quietude. O
jardineiro Reginaldo, que vê tudo à distância, tem ordem, previamente
articulada, de não agir à imunidade concedida.
Porque “quem rouba flores, merece 100 anos de perdão”.
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