“OS ESTRANHOS HOMENS DO RIO”, CONTO DE LOURDES NICÁCIO

 

Postado por DCP em 03/04/2022








Lourdes Nicácio é poeta, contista e editora
Foto: Reprodução / Google











OS ESTRANHOS HOMENS DO RIO




Nenhum sinal de Ninico. Mariana, sua mulher, impaciente, no terreiro, discutia com o filho Zequinha.

 

– Será que o negro d’água já pegou pai, mãe?

 

– Deixa de falação, criatura!

 

– Mas um magote de gente que maltratou esses negros d’água foi perseguida, perseguida ... até que...

Mariana deu um grito:  – Credo! Cale essa boca, menino!

 

O garoto, assustado, sentou-se numa pedra, ao lado da mãe. Acrescentou ainda “tou com tanto medo, minha mãe”, mas desta vez, ela não o repreendeu. Acocorou-se. Em seguida, envolveu o filho, protegendo-o com a ponta da saia. Mantiveram-se calados, por instantes. Igualmente preocupados, olhavam a estrada que dava para o rio.

 

De repente, um arrepio na espinha, como se comunicasse um perigo maior, fez com que Mariana dominasse a situação: – Menino, fique me esperando no batente da porta. Vou procurar seu pai.

 

Sem qualquer comentário, o filho obedeceu, porém ficou imóvel. Gotas de suor gelavam o rosto, as mãos, as costas. A camisa de cretone toda úmida. Músculos contraídos, olhos fixos na figura da mãe. Ela caminhava, com rapidez, na roça, rumo à margem do rio.

 

Mariana chegou ao rio, às dezoito horas, aproximadamente. As águas estavam calmas. As lavadeiras batiam nas pedras seus últimos panos; os pássaros cantavam retornando aos ninhos; o mistério da noite começava a desenhar-se no capinzal das vazantes. Mariana soltou um grito triste que parecia cortar ladeiras, atravessar ilhas e sacudir, no fundo do rio, os surubins, piaus, curimatãs, crocodilos.

 

– Niniiiiicoooooo..........


As lavadeiras puseram-se de pé interrogando-a:

 

– Que aconteceu, Mariana? Teu marido sumiu?

 

– Sumiu. Desde de manhã que saiu por estas bandas e ainda não voltou. Será, companheiras, que o bicho d’água...

 

– E ele maltratou algum?

 

– Faz poucos dias que ele arranhou a pele de um que tentava virar a canoa dele no rio. Daí pra cá, a gente vive com o coração nas mãos.

 

As mulheres arregalaram os olhos. Algumas coçavam as cabeças preocupadas. Todas conheciam a história de um outro caboclo das margens do rio São Francisco que, após ter golpeado uma daquelas estranhas criaturas, passou a sofrer perseguições. As casas onde residia eram sempre inundadas, como se dali fosse brotar um lago. Assim, acampava um tempo aqui, outro ali, cada vez mais se distanciando de água. Um dia, entretanto, em que tentou atravessar o rio em cima de uma canoa, foi arrebatado para a correnteza por uma misteriosa mão.

 

Mariana compreendeu o espanto das companheiras. Sentou-se num barranco e, muito triste, viu que se despediam: tinham medo da noite que crescia, apagando os últimos sinais do crepúsculo.

 

Os ventos traziam a mistura de gritos e inquietações. Na verdade, as noites das margens do rio São Francisco são carregadas de mistérios. Os pescadores são os únicos que enfrentam tudo com coragem na região. Por isso, no coração de Mariana restava, ainda, a esperança de que Ninico, o mágico das pescas – sua rede saía das águas sempre pesadas de peixes – estivesse em alguma parte, dali, com vida. Levantou-se, decidida a procurá-lo sozinha. Mas viu que a mais idosa das lavadeiras, Mãe Santa, guardou o cesto de roupas limpas num dos troncos das árvores ribeirinhas, depois falou com firmeza:

 

– Mariana, me acompanhe. Tenho quase certeza que seu marido tá lá, naquele bebedouro, metido em encrenca

 

 – apontou para um local mais distante.

 

Ambas, descalças, conseguiram alcançar, com rapidez, o bebedouro. E lá estavam Ninico e o negro d’água lutando: trap-pizap, trap-pizap... ruídos produzidos pelos movimentos de lutadores grotescos.

 

O negro era baixo, olhos fundos, dentes e unhas aguçadas, cabeça chata tão pelada e magra, que parecia uma armadura de ferro. Era com tudo isso que se defendia e atacava o pescador que, como arma, empunhava uma peixeira grande.

 

Mariana gritou:

 

– Taca a peixeira nele, homem!

 

Ninico, embora cansado, espertou-se mais com a presença da mulher e de Mãe Santa. Elas se protegiam, sentadas em dos galhos mais altos de um juazeiro ribeirinho.

 

Além de pescador e roceiro, Ninico levantava cercas com estacas e arames farpados; erguia paredes de casas de taipa ou adobe com os amigos; subia e descia saltadores; caçava preás e capivaras nas moitas; conduzia animais sedentos ao bebedouro. Para facilitar-lhes os movimentos, trajava calção de saco ou de algodão cru. Portanto, músculos fortes e firmes adestrados pela vida, sustentavam aquela batalha, num trap-pisap, trap-pisap, sem vencedor ou vencido. Mariana colaborou, gritando com fé:

 

– Vale a gente, meu Padim Ciço!

 

O caboclo ficou mais atento. Pulou nas costas do negro e o feriu com a peixeira afiada. O negro caiu. Rolou, rolou, até que alcançou a argila negra do rio, onde desapareceu. Ninico, restabelecido pela força da vitória, gritou eufórico:

 

– Venci o negro, mulher! Venci mais uma vez um dos negros d’água do São Francisco.

 

Mal acabou de falar, as águas se agitaram. Um bando de cabeças negras e chatas surgiram, tentando vingança. Mariana nem sabia mais se rezava, porque até a peixeira já estava envergada. Abraçou a amiga resignada.

 

– Vou morrer lutando, minha mulher! Morrer lutando!

 

Com mais alguns minutos de luta, o solo argiloso se encharcou de sangue que, misturando-se com o sumo das ervas verdes amassadas, deixava marrom e escorregadio o local, dificultando os saltos de defesa. Ninico enfraqueceu. Eram muitos que o arranhavam e mordiam. Já sem forças, caiu. Do peito escapava o soluço alto dos que agonizam. A mulher não mais se contendo, esqueceu o filho que a aguardava e saltou com coragem para defendê-lo. Com um pedaço de pau na mão, machucou alguns, enxotando-os para o meio do rio.

 

Mariana observou, entretanto, que todos voltaram ao ataque, assim que ela escorregou e caiu perto do marido fatigado. Como uma nuvem negra, prepararam-se para eliminar o casal, mas foram atingidos pelas contas do rosário de Mãe Santa. O milagre aconteceu: mergulharam todos no rio. Desapareceram. É que aquela lavadeira partiu, com as mãos, o rosário que trazia, no pescoço, após benzê-lo em nome do Padre Cícero e Frei Damião. As contas transformaram-se em balas luminosas e, quando foram jogadas nos agressores, produziram efeitos de brasas. Queimaram-nos. Mãe Santa orientou-os:

 

– Este bebedouro, agora é abençoado. Nenhum negro d’água vai aparecer mais aqui.

 

– Então... quer dizer que ...

 

– Que aqui, nestas bandas, nenhum bicho d’água vai atacar vocês. Mas se botarem o pé fora...

 

– Sua oração, Mãe Santa, é muito forte. Que Deus lhe dê recompensa neste mundo e no outro também – disseram, olhando o céu, abraçados. Ela, com o semblante sereno, se despediu e saiu, apressada.

 

De repente, um facho de luz surgiu atrás dos cajueiros da ilha mais próxima. Como um incêndio. Mas era a lua cheia. Parecia um grande ovo de luz que se partia na escuridão. O rio todo ficou tão claro, que se podiam observar piabas nadando. Mariana e Ninico banharam-se. Limparam-lhes os corpos, as vestes e mergulharam várias vezes. Não ficaram mais tempo ali, festejando o fim do medo, porque precisavam voltar para tranquilizar o menino Zequinha.




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*Do livro O RIO, CANABRAVA E OS HOMENS,  Lourdes Nicácio e Silva, 1ª edição atualizada, 2021. Conto inspirado em uma das lendas do rio São Francisco: o Negro D`água ou Caboclo D`água.

 

 

 

 


Lourdes Nicácio e Silva é pernambucana da fazenda Canabrava pertencente ao município de Belém do São Francisco. Reside no Recife desde 1980. Professora, poeta, escritora, editora. Membro da Academia Recifense de Letras e da Academia de Letras do Brasil-ALB PE. Seus livros, estudados nas escolas e universidades, renderam prêmios, homenagens, peças de teatro, monografias, comendas entre outros.  Idealizou e coordenou, com a poetisa Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, o Programa Academia/Escolas da Academia Pernambucana de Letras, editora da revista de Literatura Novo Horizonte. Autora de vários livros publicados. 









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