MARCELO MÁRIO DE MELO: POESIA NAS VEIAS E NAS VIAS
Por Maria de Lourdes
Hortas*
Postado por DCP em 06/03/2022
Penso
que, nas últimas décadas, demasiados livros de poesia têm sido publicados, a
maioria deles repetindo cansados esquemas, com linguagem sem magia, sem
surpresa e sem brilho. Por isso, quando um poeta como Marcelo Mário Melo surge
com estas ONDAS LEVES, a gente se encanta pela brisa renovada que o autor
nos oferece.
Sei
por experiência própria que mexer com palavras não é fácil. Pelo contrário , é
busca permanente, para alcançar o cerne daquilo que desejamos expressar. No
caso de Marcelo, ele não se contenta com as palavras do dicionário, e reinventa-as,
quando precisa dar o seu recado. No espaço textual, cria seu próprio
vocabulário, brinca com a sintaxe, faz experimentalismos com o idioma.
Trata-se
de um autor com uma poesia personalíssima , onde encontramos versos de grande
invenção e fluidez. Consciente do seu ofício, palmilha caminhos muito seus, sem
o desleixo e confusão que contaminam grande parte da escrita contemporânea. Nos
seus poemas as palavras, as imagens e os ritmos relacionam-se com os seus
sentidos e surgem, incandescentes, plenos de leveza e vida. Veja-se, por
exemplo, o poema com que abre o livro:
AMOUSAR
Ousar
na palavra
ousar
na espera
ousar
na escuta.
Ousar
no projeto
ousar
no preparo
ousar
no impulso.
Ousar
na carícia
ousar
na nudez
ousar
no perdão.
Ousar
ousar
ousar
paralelamente
ao
verbo amar
A
literatura, como tudo na vida, é tocada pela mutabilidade do mundo: lembrando
Bachelard , a organização do espaço no poema reflete a transformação que se
produz ao longo do tempo na ordem social, mudanças que afetam os cânones
estéticos. Por isso, em cada época o poeta sabe:
Lamber
o
dia a dia
com
a língua
da
poesia
sangue
poesia
nas
veias
vida
poesia
nas
vias.
Os
espaços sensoriais e oníricos da sua memória entrelaçam-se para construir um
trabalho que, sem recusar a sensibilidade, utiliza as técnicas de quem conhece
a poesia através dos tempos. Tudo isso, não obstante a multiplicidade dos seus
temas, confere à sua poesia uma admirável unidade, onde conteúdo e forma,
indissolúveis, se somam .
Caldeirão
efervescente
da
mistura eu quero o saldo
atento
ao que vem na concha
tirando
o melhor do caldo.
A
trajetória de vida de Marcelo Mário Melo vem seguindo paralela à senda da sua
poesia. Marxista, por algum tempo converteu o seu trabalho literário numa
tribuna revolucionária e de protesto, o que não lhe tira o mérito, pois muitos
foram os poetas que se engajaram politicamente sem perder o sentido da criação
e da arte. No Brasil, por exemplo, Castro Alves e Ferreira Goulart. Em Portugal,
Manuel Alegre, entre muitos outros.
MMM
sempre teve uma atitude fraterna em relação ao seu semelhante universal,
fundada no anseio da justiça e do bem comum. Assim, em 2012, publicou OS
COLARES E AS CONTAS - Poemas Políticos, onde evoca a sua atribulada e
sofrida experiência nos escuros anos da ditadura. Depois desse livro, no que
pese a sua contínua e vasta produção, com vários livros já prontos para
publicar e suas constantes aparições nas redes sociais , só agora, após cinco
anos, volta a reunir os seus poemas em ONDAS LEVES.
Se
,anteriormente, sua poesia foi uma crônica realista e crítica da vida social do
seu país, agora, já a partir do título - ONDAS LEVES - nos faz encontrar
um poeta interrogativo e metafísico, voltado para dentro de si mesmo, no
encantamento de quem recomeç a, prova do seu dom e da sua visão diferenciada do
mundo.
É
melhor ousalindar
do
que se enfurnar num canto
mastigando
mágoa e bílis
ou
engolindo o pranto
paralisado
de medo
congelado
pelo espanto.
Para
se ter uma visão da poética de Marcelo é necessário aprofundar-se no núcleo
filosófico da mesma, onde se encontram os conflitos entre os opostos, aceitação
e recusa, indagações e rebeldia de um ser que não aceita a injustiça e o caos
social. O poeta que por vezes é também um filósofo, como o foram, por exemplo,
Pessoa ou Drummond.
O
autor de Ondas Leves peregrinou das suas anteriores experiências de vida
à contemplação , e no momento atual parece voltado para a essência da vida.
Sempre
se pode mudar
todo
tempo é travessia
água
areia cimento
unindo
numa pasta só
ato
idéia e sentimento.
Sua
visão metafísica, psicológica e estética, são elementos que se entrelaçam e nos
remetem ao seu universo de criação. O mutável e o permanente, o cotidiano e o
universal, eis o diálogo continuo da sua poesia, plena de metáforas e imagens
que desenham espaços vividos e sonhados.
Quem
tem a presença leve
não
aparece
ar-parece
dá
o ar
da
sua graça
E
fico por aqui. Um poeta como Marcelo dispensa apresentações. Sua poesia por si
mesma se apresenta e nos acolhe. Estas breves e despretensiosas impressões de
leitura foram escritas de forma impressionista, pois não tenho as ferramentas
nem o saber dos mestres em literatura. Apenas, por amizade e admiração, atendi
ao generoso convite de Marcelo Mário Melo, honra que me deu de ler em primeira
mão este belo conjunto de poemas.
Gratidão,
poeta.
Aldeia ( arredores do Recife),
maio/2017
*Maria de
Lourdes Hortas é poetisa, ensaísta e ficcionista, atualmente colabora para
o site ‘Domingo com Poesia’.
Belíssima leitura do poeta singular homenageado e, na dialética com a poetisa sublime. Parabéns a ambos!!!
ResponderExcluirUma grande poeta apresentar-me outro. Adorei.
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