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ACERCA DA POESIA DE NATANAEL LIMA JR

 Postado por DCP em 20/03/2022

 

Por Maria de Lourdes Hortas*















No contexto da crise existencial que contamina a alma do ser humano do século XXI, fluxo de inovações e renovações, onde tantos temas se debatem, quer acerca das inovações sociais, quer quanto ao ambiente sustentável, a literatura não poderia omitir-se da revalorização de abordagens, refletindo os passos e mudanças do ser humano em seu itinerário sobre este planeta.

 

Consciente do seu mundo e do seu tempo, Natanael Lima nos apresenta neste Ensaio sobre a Canção Árida, a voz de um poeta que não nega a angústia existencial, a perplexidade e a exaustão.

 

O crítico literário, leitor severo, sabe virar e revirar pelo avesso um texto ou um poema, pondo a nu o seu corpo e a sua alma. Não é o meu caso. Colega de ofício do autor deste livro, aceitei fazer a apresentação do mesmo com as únicas ferramentas impressionistas de que disponho: alegria, simpatia e admiração.

 

Em princípio, acredito que quem já publicou cinco livros de poesia e participou de cerca de uma dezena de antologias nacionais e internacionais, dispensa apresentações. Por isso, o que escreverei aqui é o mero registro da minha leitura, um viés apenas dos muitos que certamente este Ensaio provocará.

 

Numa primeira leitura, a cada esquina me deparei com algumas tendências herdadas do pós-modernismo – busca pela aridez e secura cabralinas, sedução pelo concretismo, ecos de poesia social. À partida, tal multiplicidade de veredas me pediu uma renovada leitura, mais atenta. Assim, à medida que fui adentrando no universo poético de Natanael, pude verificar que através do amálgama e entrelaçamento das múltiplas heranças poéticas do século XX, o poeta construiu a sua identidade.

 

Se, como Cabral de Melo Neto, fugiu ao sentimentalismo e ao poema fácil, procurando o racionalismo e a secura da palavra essencial, ao contrário do seu conterrâneo, não se deixou encantar por modelos e formas fixas. Liberto de qualquer padrão, Natanael Lima navega em suas próprias águas, com liberdade e certeza de onde quer chegar. Tanto assim que, já a partir do título deste livro, define a sua intenção.

 

No poema inicial do livro, abertamente expõe-nos a sua face exausta, Sísifo escalando as escarpas da poesia em busca da mais límpida canção árida por entre pedras.

 

Clara(mente) te (re)construo

Para que sejas a luz do caminho.

 

De onde se conclui que decide lucidamente (clara/mente) construir de novo (re/construir), toda uma herança poética, dentro do destino que a vida lhe impõe: poesia, luz do caminho.

 

Os compêndios de arte poética já nos ensinaram à exaustão que a Poesia é feita de inspiração e transpiração. Os bons poetas não descartam esse exercício contínuo. Natanael Lima, a cada passo do seu trabalho, nos confirma isso, revelando-se um poeta culto, que revisitou e revisita os seus pares dos quatro cantos do mundo, abrindo janelas para, aqui e ali, ecoarem em seus versos.


Veja-se, por exemplo, o rasto de Fernando Pessoa nos versos que se seguem: 


Fingir-se estrangeiro

Do próprio corpo (...)

Abrir-se em pétalas

a canção visionária (...)

 

No seu percurso, o poeta encontra inscrições que o encantam e iluminam, intertextualidade inevitável para a poesia nestes pós/pós modernismos e tantos outros ismos que ficaram além das muralhas temporais.

 

Evidentemente, o fenômeno da “intertextualidade”, numa época em que as fronteiras e as distâncias foram abolidas, pela celeridade e abrangência das comunicações, me parece inevitável, conhecimento, partilha e diálogo desejáveis.

 

Nessa ordem de ideias, Natanael Júnior, ao encontrar-se com Celina de Holanda (grande poeta pernambucana que honra a literatura não só do Nordeste, mas do Brasil), pode confidenciar-lhe que

 

só a poesia poderá salvar

esse mundo provisório,

semear os campos

e os oceanos insípidos.

 

Em outro diálogo, desta vez com Carlos Drummond de Andrade, Natanael Lima concorda com ele e lhe diz:

 

O mundo é vasto, bem o sei (...)

Os sonhos,

nos ombros do mundo,

ascendem a sonolenta luz (...).

 

Mas, graças a Deus, bom poeta jamais acredita na plenitude do seu trabalho. Por isso mesmo NL se reconhece como aprendiz de incertezas (...) porque “incertezas nutrem versos”. Assim, talvez discípulo de Rilke

 

dentro da mais absoluta solidão (...)

proclamo a noite provisória

 

pois nela encontra o silêncio , que lhe dá as respostas:

 

Repousa tua voz

nas florestas da alma (...)

 

Solidão e angústia sempre foram, e sempre serão, companheiros inseparáveis dos que sonham versos. Só através delas podem eles ascender à luz:

 

Exaurir-se de palavras

diante do velho espelho

sem nesgas e máscaras

(...) Exaurir-se de versos,

entre desertos

e oásis.

 

Natanael Lima persegue a palavra indizível... metáfora abissal... esse réptil que rasteja no deserto árido da palavra... Por vezes, qual náufrago, lança-se ao mar. Outras, limita-se a espreitar o tempo, porque, como confessa, já não se encanta com o coro das musas/ nem a brisa do Tibet (...).

 

Há momentos em que, sonambulo, seu poema adormece entre cárceres. Outras, despe-se, em busca, exclusivamente, da linha e do traço, perseguindo o essencial, esse grão de giz/onde as estrelas se fazem livros.

 

Já perto do fim da leitura, podemos afirmar com o seu autor que

 

Os dentes afiados

como um cão

deixam cicatrizes

no poema.

 

`A despedida levamos a certeza de que, ao encerrar o seu Ensaio, Natanael Lima o fez com a certeza de que

 

o mandato/ do poema/ é criar/insubordinar/transgredir...

 

A experiência poética só é partilhável por uma leitura profunda, de empatia e iluminação. A mortificação cotidiana, nos bastidores da escrita, só outro poeta a compreende. Para além do poema, muito mais do que literatura, há o idealismo, o sonho, a profecia.

 

Àqueles que tiverem o privilégio de ter nas mãos este livro, desejo que o mesmo o desassossegue, levando-o à dúvida, à incerteza, ao mistério - enfim, à grande interrogação que se opõe à passividade das rimas e temas corriqueiros.

 

A todos, uma boa leitura.

 

 

 

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(Apresentação do livro Ensaio sobre a canção árida, de Natanael Lima Jr., Imagética Edições, 2019.)






*Maria de Lourdes Hortas é poetisa, ensaísta, ficcionista luso-brasileira e colabora com o site Domingo com Poesia. 


 



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