A BELA DOROTEIA, DE CHARLES BAUDELAIRE*
Postado por DCP em 18/04/2021
Enviado
por Urariano Mota, jornalista e
escritor pernambucano
Foto:
Reprodução
O SOL CASTIGA a cidade com a sua luz
vertical e terrível; a areia está ofuscante, e o mar espelha. Entorpecido, o
mundo esmorece molemente e faz a sesta - sesta que é uma espécie de morte
saborosa em que o adormecido, meio desperto, goza as volúpias do seu
aniquilamento.
Entretanto, Doroteia, altiva e forte
como o Sol, caminha na rua deserta, único ser vivo nesta hora sob o imenso
azul, pondo sobre a luz uma brilhante mancha negra.
Caminha, balançando com indolência o
torso tão fino sobre as ancas tão largas. Seu vestido de seda colante, de um
tom róseo-claro, contrasta vivamente com as trevas de sua pele e molda-lhe com
precisão o talhe esbelto, o dorso côncavo e o colo saliente.
Seu guarda-sol vermelho, filtrando a
luz, projeta-lhe no rosto sombrio o arrebique sangrante dos seus reflexos.
O peso da enorme cabeleira quase azul
verga-lhe para trás a cabeça delicada, dando-lhe um ar triunfante e preguiçoso.
Pesados brincos sussurram secretamente em suas minúsculas orelhas.
De quando em quando a brisa marítima
lhe ergue a saia flutuante e mostra-lhe a perna resplandecente e soberba; e o
pé, igual aos pés das deusas de mármore que a Europa encerra nos museus,
imprime o seu molde fiel na areia fina. Pois Doroteia é tão prodigiosamente
faceira que o prazer de ser admirada supera o orgulho de já não ser escrava, e,
embora livre, caminha descalça.
E ela prossegue assim,
harmoniosamente, contente da vida, sorrindo um branco sorriso, como se
divisasse ao longe, no espaço, um espelho a refletir-lhe o andar e a beleza.
À hora em que os próprios cães uivam
de dor sob o Sol, que os morde, que poderoso motivo faz andar a preguiçosa
Doroteia, bela e fria como o bronze?
Por que deixou sua casinha tão
galantemente arranjada, de que as flores e as esteiras fazem, com tão pouca
despesa, um perfeito boudoir; onde ela sente tanto prazer em pintar-se, em
fumar, em fazer-se abanar ou em mirar-se no espelho de seus grandes leques de
plumas, enquanto o mar, que rola na praia a cem passos dali, faz às suas vagas
fantasias um poderoso e monótono acompanhamento, e a marmita de ferro, onde se
prepara um guisado de caranguejos com arroz e açafrão, lhe envia, do fundo da
cozinha, seus perfumes excitantes?
Talvez tenha um encontro com algum
jovem oficial que, em plagas longínquas, ouviu falar, por seus camaradas, na
célebre Doroteia. Com toda a certeza ela lhe pedirá, a simples criatura, que
lhe descreva o baile da Ópera, e lhe perguntará se é possível ir lá de pés
descalços, como nas danças dominicais, em que até as velhas cafrinas ficam
ébrias e furiosas de alegria; e depois, ainda, se as belas damas de Paris são
todas mais bonitas do que ela.
Doroteia é admirada e mimada por todos,
e seria de todo feliz se não fosse obrigada a juntar piastra por piastra para
resgatar sua irmãzinha, que tem precisamente onze anos e já está madura, e tão
linda! Ela o conseguirá, sem dúvida, a bela Doroteia: o senhor da menina é tão
avarento, tão avarento, que não compreende outra beleza a não ser a dos
escudos!
*Do livro “Pequenos Poemas em Prosa”, tradução de Aurélio
Buarque de Holanda.
Seu texto é de uma beleza poética inesquecível! Parabéns meu amigo Poeta - em verso e em prosa! Beijos
ResponderExcluirSeu texto é de uma beleza poética inesquecível! Parabéns meu amigo Poeta - em verso e em prosa! Beijos
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