UM LADO DE MANUEL BANDEIRA AINDA POUCO CONHECIDO
Por Fellipe Torres*
Publicado em Obvious/Literatura
Manuel
Bandeira / Foto: Google / Reprodução
Por ter vivido a
maior parte dos seus 82 anos no Rio de Janeiro, o poeta Manuel Bandeira
costumava ouvir comentários sobre ter nascido no Recife “por acidente”. Não
gostava. Preferia creditar como “acidente” o fato de ter deixado a capital
pernambucana duas vezes, dos 2 aos 6 anos, e novamente aos 10, para dali em
diante só voltar de visita. “Mas esses quatro anos, entre os 6 e os 10,
formaram a medula do meu ser intelectual e moral, e disso só eu mesmo posso ser
o juiz. Me sinto tão autenticamente pernambucano quanto, por exemplo, Joaquim
Cardozo, Mauro Mota e João Cabral de Melo”, rebatia. Esse Bandeira informal, na
primeira pessoa do singular, menos poeta e mais cronista, é revelado no livro
Andorinha, andorinha (Editora Global, R$ 65).
Organizada por Carlos
Drummond de Andrade em 1966, a coletânea reúne quatro décadas da prosa do autor
modernista (de 1925 a 1965). Fora de catálogo há cerca de 20 anos, o livro
mostra um Bandeira crítico de artes visuais, de literatura, cinema, teatro,
música, assim como o despojado cronista de olhos aguçados para decifrar o
cotidiano. Na avaliação do professor da UFPE Carlos Newton Júnior, doutor em
letras pela mesma universidade e pesquisador requisitado quanto à obra de
Bandeira, o autor pernambucano é tão grande cronista e prosador quanto poeta.
“Somente ficou mais
conhecido como poeta por condições alheias. Foi um grande critico de arte. Na
seleção feita pelo amigo Carlos Drummond de Andrade, a crônica de Bandeira é
muito vasta, pois desde os anos 1920 ele escrevia em jornais com um espectro
muito vasto. São textos sobre cinema, teatro, música, artes plásticas, tudo com
uma propriedade enorme. Manuel Bandeira foi um dos poetas mais cultos de toda a
história da nossa literatura. O fato de Drummond ter separado em sessões temáticas,
dá uma visão ampla do gênio de Bandeira”, comenta Newton Júnior, que vai
assinar o prefácio de outro livro do poeta recifense, Crítica das artes, a ser
reeditado ainda este ano. Na obra, há resenhas sobre Portinari e Mário de
Andrade, por exemplo. Embora ressalte a importância do livro, Carlos Newton
reconhece Andorinha, andorinha como “a súmula da crônica bandeiriana, o que de
melhor ele já escreveu”.
Sobre a prosa do
autor de A cinza das horas, o ensaísta Davi Arrigucci Jr escreve: “Seu fino
espírito de observação e sua inteligência crítica se casam à escrita seca e
límpida, moderna e clássica a uma só vez, de grande naturalidade em sua mescla
saborosa do registro informal com a linguagem culta, capaz da síntese mais ágil
e sagaz diante do mais espinhoso dos assuntos”. Exaltação semelhante é feita
pelo poeta e filósofo Ângelo Monteiro, autor de Arte ou desastre (2011), com
capítulo sobre a produção bandeiriana e a poética do modernismo. Para ele,
Bandeira é “um prosador invejável por abranger, em seu estilo desenvolto e
livre, tantos os elementos mais altos da cultura como os mais simples e mais
populares”. A antologia organizada por Drummond ajuda a revelar, portanto, o
Bandeira “crítico, intérprete da cultura, que sabia distinguir o que era
acidental do que era permanente da literatura, além de escrever simples,
espontâneo, com uma linguagem permanente, sempre atual”.
Se a maneira
coloquial e agradável sobressai na escrita de Bandeira, o crítico literário
José Rodrigues de Paiva, doutor em letras pela UFPE, atribui tal característica
ao fato do escritor ser muito espontâneo e valorizar extratos populares da
sociedade. “Era um grande pesquisador da linguagem. Em uma fase, homenageia
Portugal, ao dizer que Camões vai permanecer enquanto durar a língua
portuguesa. Chega inclusive a escrever uma série de textos recuperando o modo
de escrever da chamada poesia galaico-portuguesa ou lírica trovadoresca.
Depois, está a exaltar o jeito gostoso de falar do brasileiro, da norma popular
da língua e diz que chega de ‘macaquear a sintaxe portuguesa’”, frisa Paiva,
pesquisador português radicado no Brasil.
Ainda sobre a relação
com o Recife, em Andorinha, andorinha Bandeira descreve minuciosamente a casa
de estilo neoclássico onde morou na Rua da União (bairro da Boa Vista, onde
hoje funciona o Espaço Pasárgada). Atém-se especialmente ao quintal, ao galinheiro,
localizado ao lado do “cambrone” (ele mesmo explica se tratar do nome dado,
naquele início de século, à privada), das flores, hortaliças. “Na rua, com os
meninos da minha idade eu brincava ginasticamente, turbulentamente; no quintal
sonhava na intimidade de mim mesmo. Aquele quintal era o meu pequeno mundo
dentro do grande mundo da vida...”, escreveu, em 1965. Mais adiante, em outra
crônica, lembra quando aproveitava os meses de verão para tomar banho no rio
Capibaribe, nos arredores da casa do avô, na Caxangá. E recorda o terror de
acordar, certo dia, para fugir de uma violenta cheia. Na memória, a imagem de
um boi morto passar carregado pela força das águas.
Carlos
Pena Filho / Foto: Google / Reprodução
Posta-restante
A devolução de uma carta, em 1962, deixou Manuel Bandeira inconsolável. Não se
tratava de aborrecimento comum por ineficiência do sistema postal, mas por um
infeliz mal entendido e a morte prematura do destinatário antes de ler a
correspondência. Em janeiro do ano anterior, Bandeira não economizou elogios ao
escrever a Carlos Pena Filho para saudá-lo pela publicação de Livro geral. O
modernista exaltava alguns poemas em especial, mas sem deixar de frisar a
beleza dos restantes: “Em todos encontro, a cada passo, algum impressionante
achado das suas ‘pacientes buscas o espírito’”. Por ter se enganado quanto ao
endereço do colega escritor, a carta passou um ano guardada, até retornar com
um carimbo: “Desconhecido no local indicado”. Nesse meio tempo, Pena Filho
morreu repentinamente, aos 31 anos. Leia um dos sonetos do livro elogiados por
Bandeira:
Soneto
do desmantelo azul Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas, depois, vesti meus gestos insensatos e
colori, as minhas mãos e as tuas. Para extinguir em nós o azul ausente e
aprisionar no azul as coisas gratas, enfim, nós derramamos simplesmente azul
sobre os vestidos e as gravatas. E afogados em nós, nem nos lembramos que no
excesso que havia em nosso espaço pudesse haver de azul também cansaço. E
perdidos de azul nos contemplamos e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
Cícero
Dias / Foto: Google / Reprodução
Um
Chagall brasileiro Em 1961, Manuel Bandeira escreveu
crônica para reparar uma pequena injustiça cometida ao conterrâneo Cícero Dias.
Ao lado de Rubem Braga, Barreto Leite Filho e Raimundo Sousa Dantas, o pintor
pernambucano foi designado como embaixador para algumas repúblicas africanas.
Enquanto os três primeiros – sobretudo Braga – tiveram ampla cobertura, o nome
de Cícero Dias parecia ignorado. Contudo, antes de ser despachado para o
Senegal, leu essas linhas: “Se José Lins do Rego fosse vivo, já teria derramado
o coração num artigo. Pois aqui estou para falar por ele, não fosse eu
pernambucano de quatro costados, nascido no Recife, em Capunga e, com muita
honra, na rua Joaquim Nabuco”.
Bandeira se alonga a
contar como, ao se mudar para a França, ainda muito jovem, Cícero Dias já era
renomado no Brasil, “intérprete da paisagem e da alma pernambucana em sua maior
profundidade. Mas ainda era um louquinho, basta dizer que se servia em suas
aquarelas até de tinta de escrever. Um Chagall brasileiro, pela sua fantasia
surpreendente e desvairadamente poética. Mas aquele rapaz de basta cabeleira e
gestos descomedidos, que parecia indisciplinável, quer como pintor quer como
homem, tornou-se, em poucos anos de Paris, como pintor um abstracionista de
severa linha construtiva, como homem que luta pela vida um excelente
funcionário contratado da nossa embaixada em França.
Ascenso
Ferreira / Foto: Google / Reprodução
Dócil
gigante O poeta Ascenso Ferreira era grande em vários
sentidos. Corpulento, com mais de cem quilos e cerca de dois metros de altura,
a caricata figura do escritor nascido em Palmares, na Zona da Mata, era
completada com um chapelão de palha e os charutos inseparáveis. Manuel Bandeira
tinha enorme apreço e admiração pelo colega: “(Ele) tem uma estatura
gigantesca, que, a princípio, assusta. No entanto, basta ele abrir a boca, para
dissipar todos os terrores: é um sentimentalão, e sentimentalmente compreendeu
e cantou o drama doloroso do matuto a quem ama. (...) Os seus poemas são
verdadeiras rapsódias nordestinas, onde se espelhou fielmente a alma ora
brincalhona, ora pungentemente nostálgica das populações dos engenhos”.
Em tom de
brincadeira, Bandeira registrava as visitas de Ascenso com piadas sobre seu
porte físico: “Meu apartamento é pequeno, não comporta bem um homem das
dimensões de Ascenso, que me entope a sala, o quarto e parte da cozinha e do
banheiro. Ainda se fosse Ascenso só! Não é, Ascenso e mais o seu enorme
chapelão de palha grossa, mais oca de bugre do que chapéu. Enfim, a alegria de
rever o grande poeta de Catimbó,de Cana-caiana e de Xenhenhém compensa tudo”.
Gilberto
Freyre / Foto: Google / Reprodução
Troca
de elogios “Recife/ Não a Veneza americana/ Não a
Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais/ Não o Recife dos Mascates/ Nem
mesmo o Recife que aprendi a amar depois / - Recife das revoluções libertárias/
Mas o Recife sem história nem literatura/ Recife sem mais nada/ Recife da minha
infância”. Ter escrito os versos de Evocação do Recife era, para Manuel
Bandeira, a prova cabal do quanto ele era um “pernambucano autêntico”. Em crônica
de 1958, orgulhava-se da maneira como Gilberto Freyre referiu-se ao poema:
“cada uma de suas palavras representa um corte fundo no passado do poeta, no
passado da cidade”.
Duas décadas antes,
os papéis estavam invertidos. Por ocasião do lançamento de Nordeste, em 1937,
Bandeira fazia as vezes de crítico literário para exaltar a obra do sociólogo
pernambucano. Havia, naqueles escritos, uma novidade em relação a publicações
anteriores de Freyre – a composição era mais simples, clara, despojada. Se nos
livros anteriores o autor escrevia de maneira poética somente aqui e ali, em
Nordeste a beleza na composição do texto está sempre presente. “Um poeta que
sem perturbar de modo nenhum o desenvolvimento objetivo e preciso dos temas
tratados, lhe comunica uma força lírica e exata ambientação”.
Liberdade
dos versos Como um bom crítico literário, Bandeira era
cauteloso ao identificar a essência e o estilo de cada autor em sua respectiva
produção poética. Por esse motivo, acontecia de exaltar um escritor não só pela
existência de alguns elementos, mas também pela ausência deles. A aparente
contradição fica clara quando discorre sobre dois poetas conterrâneos. Para
Bandeira, um dos grandes trunfos do recifense Olegário Marianno era a
musicalidade de suas poesias. “O verso livre iria, sem dúvida, prejudicar o
caráter sensivelmente melódico da sua música”. Em outro texto, questiona-se se
é possível ensinar alguém a produzir versos metrificados e comenta a própria
curiosidade em fazer tal experimento. “Uma vez achei um aluno, e que aluno:
ninguém menos que João Cabral de Melo Neto, grande poeta sem esse dom especial
de ouvido. A experiência ficou, infelizmente, na primeira lição”.
*Fellipre Torres é
jornalista, produtor editorial e fotógrafo. Mata um leão por dia na tentativa
do ultra-humano. fellipetorres.pe@gmail.com
Os
textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Site DCP.
Deliciosa revelação sobre o nosso múltiplo Bandeira!
ResponderExcluirUm lado de Bandeira pouco conhecido. Obg pelo comentário, minha amiga. Volte sempre e se possivel divulgue o site com seus amigos.
ExcluirComo o País vem encolhendo.... Apesar de tanta brava gente ampliando os horizontes...
ResponderExcluirE verdade, meu caro Ramos Sobrinho.
ExcluirBandeira é surpreendente
ResponderExcluirConheço bem toda sua obra. Foi o meu padroeiro poético
Um dos poetas que leio e releio. Excelente materia. Aplausos ao autor e ao DCP.