MANUEL BANDEIRA DA VIDA TERNA E ETERNA
Por Urariano Mota*
Publicado por DCP em 18/10/20 às 00:02
Manuel
Bandeira / Foto: Reprodução
Neste
13 de outubro, faz 51 anos que o nosso maior poeta se foi.
Com
Manuel Bandeira temos uma viagem íntima nos poemas que nos abalaram desde
quando éramos adolescentes. E nos dizíamos, surpresos, “então isto é poesia!”.
E por isso mesmo, por força dessa revelação, passamos a ser amantes de
“PORQUINHO-DA-ÍNDIA
Quando
eu tinha seis anos
Ganhei
um porquinho-da-índia.
Que
dor de coração me dava
Porque
o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava
ele pra sala
Pra os
lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele
não gostava:
Queria
era estar debaixo do fogão.
Não
fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
– O meu
porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.”
A
parte que vem da razão nos fala que por trás desses versos existe um homem
experiente na arte de criar um poema, um ser feroz que fere porque é poesia.
Esse poema cresce pelo pequeno, pelos diminutivos: porquinho, bichinho,
limpinhos, ternurinhas, até explodir no inusitado, no súbito golpe, no absurdo
da relação entre uma cobaia e o amor, “o meu porquinho-da-índia foi a minha
primeira namorada”.
Porquinho-da-índia
é um poema escrito antes de 1930, mas um verso diz, “Levava ele pra sala”. Isso
até então não era poesia nem português. Até hoje, os gramáticos de fama
condenam quem usa “levava ele”. Levava-o, corrigem, e vamos todos ser idiotas
conforme a norma culta. Levava-o, para o inferno. E nada mais antipoético que
um “levava ele”, sentenciariam os asnos de 1930 a 2020 e vindouros.
Há
pouco, me lembrei de uma lição de poesia que Manuel Bandeira recebeu desde a
infância. Copio do seu livro “Itinerário de Pasárgada”, que recomendo como uma
lição fundamental de poesia e literatura:
“Lembro-me
de uns versos cujo autor até hoje ignoro. Ouviu-os meu pai de um sujeito que um
dia, no alpendre de uma casinha do interior de Pernambuco, lhe veio pedir
esmola. Meu pai, que gostava de brincar, disse-lhe: ‘Pois não! Mas você antes
tem de me dizer uns versos.’ Ora, o nosso homem não se fez de rogado e saiu-se
com esta décima lapidar, cujo primeiro verso, estropiado, mostra que a estrofe
não era de sua autoria:
‘Tive
uma choça, se ardeu-se.
Tinha
um só dente, caiu.
Tive
uma arara, morreu.
Um
papagaio, fugiu.
Dois
tostões tinha de meu:
Tentou-me
o diabo, joguei-os.
E
fiquei sem ter mais meios
De
sustentar os meus brios.
Tinha
uns chinelos... Vendi-os.
Tinha
uns amores... Deixei-os.’ ”
Que
lição de poesia, vinda de um homem analfabeto para o futuro poeta! Mas é
preciso ser um artista de mente aberta, com o brilho do gênio para
compreendê-la. Em outros, passaria batida, ou se a lembrasse, não a julgaria
digna de citação. Desprezaria o ouro por preconceito. Mas Manuel Bandeira era
grande poeta pelo justo motivo da sua sensibilidade elástica, plástica.
A
propósito do seu universo sem fronteiras, vale a pena publicar trechos de uma
conversa que tive com André Cintra, jornalista, escritor e editor de cultura do
Vermelho, que copio sem aviso ou autorização:
André
- Bandeira era um bom
"homenageador". Quando o Mário de Andrade morreu, Bandeira fez um
poema monumental para o Mário: "A Mário de Andrade Ausente"
“A
MÁRIO DE ANDRADE AUSENTE
Anunciaram
que você morreu.
Meus
olhos, meus ouvidos testemunham:
A alma
profunda, não.
Por
isso não sinto agora a sua falta.
Sei
bem que ela virá
(Pela
força persuasiva do tempo).
Virá
súbito um dia,
Inadvertida
para os demais.
Por
exemplo assim:
À mesa
conversarão de uma coisa e outra,
Uma
palavra lançada à toa
Baterá
na franja dos lutos de sangue.
Alguém
perguntará em que estou pensando,
Sorrirei
sem dizer que em você
Profundamente
Mas
agora não sinto a sua falta.
(É
sempre assim quando o ausente
Partiu
sem se despedir:
Você
não se despediu.)
Você
não morreu: ausentou-se.
Direi:
Faz já tempo que ele não escreve.
Irei a
São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei:
Está na chacrinha de São Roque.
Saberei
que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida
é uma só. A sua continua.
Na
vida que você viveu.
Por
isso não sinto agora a sua falta”.
André
– Houve uma época em que ele assinou uma coluna de jornal onde fazia perfis dos
companheiros de artes e letras.
Eu -
Grande crítico literário também. O que ele escreveu sobre Ascenso Ferreira
ninguém havia notado antes. E destacava em Ascenso, como destacou em
compositores de música popular, trechos e sacadas fora do universo dos livros,
fora da academia.
Fora
da conversa, anoto que Manuel Bandeira observou em Ascenso Ferreira uma
interpretação / leitura do poema além dos livros. Mais preciso, aqui:
"Quem
não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os
seus poemas não pode fazer ideia das virtualidades verbais neles contidas”
De
volta à conversa:
Eu -
Bandeira falava, por exemplo, que tinha inveja dos versos de Orestes Barbosa:
"tu pisavas nos astros distraída”
Fora
da conversa, copio de modo literal o que o poeta escreveu:
“Se
fizessem aqui um concurso, como fizeram na França, para apurar qual o verso
mais bonito de nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes Barbosa em
que ele diz: ‘tu pisavas os astros distraída..’."
E
volto à conversa com André Cintra:
André
- Você sabia que o Mário de Andrade batizou a própria máquina de escrever de
Manuela, em homenagem ao Manuel Bandeira?
Eu: -
Essa não! Não sabia. Em tempo: o poeta era um homem de gênio, cultíssimo,
erudito, que não fazia pose de erudição. Ele era solteiro, solteirão, por conta
da tuberculose da juventude, que ficou como uma marca. Mas um amante sem hora
marcada, na sua solidão. Tu lembras daquele poema para Jaime Ovalle? (Na
solidão,) "pensando na vida e nas mulheres que amei".
E
encerramos por enquanto a nossa conversa. Motivado, copio esta solidão em
poesia:
“Poema
só para Jaime Ovalle
Quando
hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora
a manhã já estivesse avançada)
Chovia.
Chovia
uma triste chuva de resignação
Como
contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então
me levantei,
Bebi o
café que eu mesmo preparei,
Depois
me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
-
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei”.
De que
matagal de parnasianismo e fala educada, falsamente educada, o poeta saiu, a
ponto de se tornar o São João Batista do
modernismo, na frase de Mário de Andrade. Desde o poema de provocação Os Sapos,
que virou hino de rebeldia para os modernistas:
“Os
sapos
Enfunando
os papos,
Saem
da penumbra,
Aos
pulos, os sapos.
A luz
os deslumbra.
Em
ronco que aterra,
Berra
o sapo-boi:
-
"Meu pai foi à guerra!"
-
"Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
O
sapo-tanoeiro,
Parnasiano
aguado,
Diz: -
"Meu cancioneiro
É bem
martelado.
Vede
como primo
Em
comer os hiatos!
Que
arte! E nunca rimo
Os
termos cognatos.
O meu
verso é bom
Frumento
sem joio.
Faço
rimas com
Consoantes
de apoio.
Vai
por cinquenta anos
Que
lhes dei a norma:
Reduzi
sem danos
A
fôrmas a forma.
Clame
a saparia
Em
críticas céticas:
Não há
mais poesia,
Mas há
artes poéticas..."
Urra o
sapo-boi:
-
"Meu pai foi rei!"- "Foi!"
-
"Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
Brada
em um assomo
O
sapo-tanoeiro:
- A
grande arte é como
Lavor
de joalheiro.
Ou bem
de estatuário.
Tudo
quanto é belo,
Tudo
quanto é vário,
Canta
no martelo".
Outros,
sapos-pipas
(Um mal
em si cabe),
Falam
pelas tripas,
-
"Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
Longe
dessa grita,
Lá
onde mais densa
A
noite infinita
Veste
a sombra imensa;
Lá,
fugido ao mundo,
Sem
glória, sem fé,
No
perau profundo
E
solitário, é
Que
soluças tu,
Transido
de frio,
Sapo-cururu
Da
beira do rio...
Até
este rompimento, definitivo:
“POÉTICA
Estou
farto do lirismo comedido
Do
lirismo bem comportado
Do
lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou
farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um
vocábulo.
Abaixo
os puristas.
Todas
as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas
as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos
os ritmos sobretudo os inumeráveis.
Estou
farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De
todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De
resto não é lirismo
Será
contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos
de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero
antes o lirismo dos loucos
O
lirismo dos bêbedos
O
lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O
lirismo dos clowns de Shakespeare.
– Não
quero saber do lirismo que não é libertação.”.
Bandeira
é autor de versos que atingiram aquele estado raríssimo de ir além do gosto da
gente culta. Viraram quase uma reflexão, um provérbio. Exemplos disso vêm sem
muita pesquisa: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”, ouvimos,
quando nada mais resta fazer. “Foi o meu primeiro alumbramento”, e vejam que
palavra bela, alumbramento, posta em circulação e moda na língua. Todos
apreendemos de imediato o significado, porque o poeta assim nos fala depois de
“Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo”. Assim
como também apreendemos pelo poema o sentido de “Vou-me embora pra Pasárgada” –
fugir, sumir, buscar abrigo em uma terra utópica de felicidade.
Essas
coisas não se escrevem por dom ou presente dos deuses. Versos assim se conseguem
ao longo de muita vida, estudo e trabalho. A linha do poema de Bandeira parece
vir curtida, decantada, palavra por palavra. Raro ele corre em voo livre de
condor, antes plana, paira, na altura, contraditoriamente parecendo voar baixo,
ao nível do chão, do cotidiano, do minúsculo dos dias.
Nele,
o sentido do poema está antes no verso.
Essa
linha lapidar que sobrevive ao poema, à circunstância, não se encontra em outro
poeta brasileiro com a frequência com que se encontra em Manuel Bandeira. “A
vida inteira que podia ter sido e que não foi” é um verso que nos fica, para
sempre, é uma luz que guardamos até mesmo sem conhecer o poema Pneumotórax. Até
mesmo sem saber o último dia do corpo físico do poeta.
*Urariano Mota é
escritor e jornalista recifense. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O
filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”.

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