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GUARDEM O NOME DE GILVAN LEMOS




PUBLICADO EM LITERATURA/OBVIOUS POR FELLIPE TORRES*





Silenciosamente, assim como viveu, escritor pernambucano morreu no dia 1ยบ de agosto, aos 87 anos. Um homem de poucas palavras faladas, mas muitas escritas. Poucas apariรงรตes, mas muitos admiradores.




Gilvan Lemos / Foto: Reproduรงรฃo





Banho de aรงude, cinema, futebol e gibi. Paixรตes simples de uma infรขncia interiorana moldaram o imaginรกrio de um jovem aspirante a escritor, morador de Sรฃo Bento do Una, Agreste de Pernambuco, na dรฉcada de 1940. Com alguma facilidade, Gilvan de Souza Lemos (1928-2015) criava pastiches de herรณis norte-americanos, decalcava traรงos da coleรงรฃo de revistinhas e pinรงava referรชncias de filmes de faroeste. Por causa do pouco estudo (sรณ frequentou a escola atรฉ o terceiro ano da educaรงรฃo primรกria), passou a se interessar por literatura somente por insistรชncia da mรฃe e da irmรฃ. Aceitou ler O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, e se apaixonou pelo universo das letras. A partir de entรฃo, passou a consumir e, aos poucos, produzir ficรงรฃo.

Aos 17 anos, tรญmido e discreto (como seria atรฉ o fim da vida), enviou para uma revista um de seus contos junto a uma carta. Nela, pedia para os editores serem complacentes caso decidissem rejeitar o texto. A negativa deveria sair com o nome de um pseudรดnimo, para nรฃo tornรก-lo alvo da “lรญngua ferina” do povo. A publicaรงรฃo da narrativa curta, posteriormente premiada, foi o primeiro momento de glรณria. Foi o incentivo para a escrita do primeiro livro de fรดlego, logo destruรญdo pelo autor, por achar o material de baixa qualidade. Aos 21, em 1948, mudou-se para o Recife, onde vivia em uma pensรฃo.

“Comecei a imaginar um romance, tinha ele na cabeรงa, mas faltava mรกquina de escrever. Foi quando consegui comprar uma, parcelada em prestaรงรตes”, dizia Gilvan. No quarto apertado, colocava a nova aquisiรงรฃo equilibrada em uma caixa de sapato, em cima da cadeira. Em um mรชs e 17 dias, escreveu Noturnos sem mรบsica, primeiro romance publicado, vencedor de prรชmio, mas ignorado pela crรญtica local. Era o comeรงo de uma longeva carreira literรกria, de 25 obras editadas, algumas por grandes editoras nacionais.

Recentemente, com a idade avanรงada, Gilvan vinha se queixando da perda de memรณria, motivo pelo qual passou a se dedicar apenas a contos. Ao amigo,  pesquisador e escritor Pedro Amรฉrico de Farias, queixava-se de ter “perdido o gรกs” para escrever. “Hรก pouco tempo, ele me disse que andava relendo contos e romances dele e estava muito surpreso. Imaginei que ele falaria coisas ruins, que nรฃo escreveria mais aquilo. Perguntei o motivo, e ele disse: ‘Sรฃo muito bons, penso atรฉ que nรฃo fui eu que escrevi’.” 




Foto: Reproduรงรฃo




Ponto de encontro

No convรญvio com outros autores e intelectuais, Gilvan encarnava uma persona de brincalhรฃo, de homem afรกvel, alternada com caracterรญsticas de alguรฉm recluso. Nas dรฉcadas de 1980 e 1990, era a grande sensaรงรฃo da Livro Sete (antiga livraria do Recife), consagrado ponto de encontro de escritores. Na calรงada, um banco de apenas quatro lugares era disputadรญssimo quando o escritor estava presente (ou seja, quase todos os dias).

Para o amigo Nivaldo Mulatinho, especialista na obra de Gilvan, por suas peculiaridades, o autor era pessoa nรฃo muito fรกcil de se conviver. “Hรก episรณdios daquela รฉpoca como quando o escritor Josuรฉ Montello se aproximou para conhecer Gilvan que, ao vรช-lo, saiu correndo. Depois, ele explicou que nunca tinha lido nada de Josuรฉ. Por isso, queria evitar problemas. Foi muito engraรงado”.

Acadรชmico tardio

O banco da Livro Sete foi batizado por Gilvan Lemos de “academia da calรงada”. Isso porque o autor de Emissรกrios do diabo era magoado por ter fracassado em nas trรชs primeiras tentativas de ingresso na Academia Pernambucana de Letras. Ele sรณ viria a entrar para instituiรงรฃo em 2012. “Gilvan brincava ao dizer que ele jรก era mais ‘uma vaga’ na academia do que um candidato, pois jรก entraria muito velho. Essa vontade de pertencer ร  APL era a maneira de homenagear Sรฃo Bento do Una. Queria deixar o povo feliz de ter um representante na academia”, comenta o editor da extinta Livro Sete, Tarcรญsio Pereira. Quando a livraria fechou, Gilvan passou a frequentar a Nossa Livraria, na Rua do Riachuelo, tambรฉm no centro do Recife.

Sem medo de morrer “anรดnimo”

Por causa do silรชncio da crรญtica em torno da primeira obra publicada, Noturnos e mรบsica, Gilvan Lemos tomou atitude drรกstica. Passou a escrever somente para as prรณprias gavetas. Foram precisos 12 anos para superar o episรณdio e submeter um novo romance para publicaรงรฃo. Por conselho do amigo Osman Lins, enviou ร  editora Civilizaรงรฃo Brasileira o original de Emissรกrios do diabo, considerada a principal obra-prima, relanรงada em 2013 pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), junto com O anjo do quarto dia e Os olhos da treva. A grande insistรชncia de Osman, ciente da grandeza da obra do conterrรขneo, era convencer Gilvan Lemos a migrar para o Sudeste do paรญs em busca de visibilidade, sob pena de “morrer como escritor anรดnimo” no Recife. “Isso aconteceu um pouco com Joaquim Cardozo, um grande poeta desconhecido no Brasil. A situaรงรฃo de Gilvan รฉ bem semelhante, os dois se parecem muito. Dois homens recatados, silenciosos”, avalia o pesquisador Pedro Amรฉrico de Farias.




Foto: Reproduรงรฃo



Para o editor Tarcรญsio Pereira, Gilvan nรฃo chega a ser um desconhecido, mas acredita em uma divulgaรงรฃo muito maior da obra, caso ele tivesse se mudado para o Rio de Janeiro ou Sรฃo Paulo. “Mesmo ficando aqui na cidade, teve livros publicados por grandes editoras, como Globo, Civilizaรงรฃo Brasileira, Record. Ele era conhecido no meio editorial a ponto de despertar interesse de grandes grupos. Quanto ao legado daqui para frente, รฉ uma pena que Gilvan nunca se casou ou teve filhos e, portanto, nรฃo deixou ninguรฉm da famรญlia para administrar a obra dele”. Um centro cultural - com biblioteca, museu e oficina de artes - estรก sendo construรญdo em Sรฃo Bento do Una, com a coordenaรงรฃo da sobrinha Lรญvia Valenรงa, para preservar a memรณria do romancista.


Vontade de ir embora nรฃo faltou. Na primeira tentativa de mudanรงa para o Rio de Janeiro, ainda no inรญcio da carreira literรกria, Gilvan foi impedido por um tio. Em outras vezes, a proximidade da famรญlia pesou contra. Segundo Amรฉrico, como tinha emprego federal, ele podia ser transferido para qualquer parte do Brasil. “Essa chance existiu. Ele se arrependeu de nรฃo ter ido. Era um pouco amargurado, pois tinha dimensรฃo da grandeza e da importรขncia da prรณpria obra. Ele tinha carreira nacional garantida. Depois, ficou mergulhado em um provincianismo contra a vontade dele. Acomodou-se”. Para Amรฉrico, hรก um grande descaso histรณrico com a obra de Gilvan. “Acho que nรฃo รฉ tarde. Ele nos deixa a obra como heranรงa”. Por ocasiรฃo da reediรงรฃo das obras em 2013, o escritor Raimundo Carreiro classificou Gilvan Lemos como “um dos mais importantes escritores de Pernambuco, integrante da geraรงรฃo pรณs-regionalismo e anterior ao Movimento Armorial”. 




Foto: Reproduรงรฃo



Documentรกrio

As poetas Cida Pedrosa e Mariane Biggio disponibilizaram gratuitamente na internet o recรฉm-lanรงado documentรกrio LEMOS, Gilvan, lanรงado em junho passado. Em meses de gravaรงรฃo, a equipe acompanhou a vida do escritor entre o Recife, onde morava, e Sรฃo Bento do Una, no Agreste, cidade natal com a qual tem forte vรญnculo afetivo. No filme de 20 minutos, Gilvan fala sobre a capital pernambucana, a evoluรงรฃo da carreira, a relaรงรฃo com as duas cidades.





*Fellipe Torres Jornalista, produtor editorial e fotรณgrafo. Mata um leรฃo por dia na tentativa do ultra-humano. fellipetorres.pe@gmail.com 















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2 comentรกrios

  1. ร“tima matรฉria Felipe Torres, parabรฉns por divulgarcom competรชncia, o nosso grandioso Gilvan que nรฃo Lemos.

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