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ENTREVISTA COM O ESCRITOR SÂNZIO DE AZEVEDO



Por Diego Mendes Sousa







“Tive o prazer e a honra de ter sido orientando de Afrânio Coutinho,
fundador na nova crítica no Brasil. Aprendi com ele a cada vez mais
valorizar a literatura das províncias e a buscar sempre pesquisar as
fontes originais, sem confiar muito em transcrições.”





Escritor Sânzio de Azevedo/
Crédito: Reprodução



A integridade do pensamento, a maestria verbal e a paixão ao fazer literário perpassam por esta entrevista, com Sânzio de Azevedo, nome insigne e fundamental para a crítica literária do país, e sobretudo, para as letras cearenses.

Com exclusividade para o saite Domingo com Poesia, Diego Mendes Sousa conversa com o poeta e professor Sânzio de Azevedo sobre o seu caminhar pelas sendas do conhecimento.  

Sânzio de Azevedo foi amigo pessoal de Guilherme de Almeida. Aos 10 anos de idade, já trocava correspondência com Erico Verissimo. Sempre apreciou filmes de Faroeste americano e gosta de Jazz. Filho do poeta Otacílio de Azevedo, herdou do pai a inteligência artística. Notabilizou-se como pesquisador de literatura, sendo referência histórica para o Ceará.

É autor de extensa obra ensaística, com destaque para Caminhos da poesia (1968), Poesia de todo o tempo (1970), A Padaria Espiritual 1892-1898 (1970), Apolo versus Dionisos: considerações em torno do Parnasianismo brasileiro (1970), A Academia Francesa do Ceará 1873-1875 (1971), O Centro Literário 1894-1904 (1973), Literatura Cearense (1976), Aspectos da literatura cearense (1982), A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará (1996), Dez ensaios de literatura cearense (1985), Novos ensaios de literatura cearense (1992), O Modernismo na poesia cearense: primeiros tempos (1995), Para uma teoria do verso (1997), Adolfo Caminha: Vida e Obra (1997), Cruz e Sousa e a teoria do verso (1999), Joaquim de Sousa: o Byron da Canalha ou o Castro Alves cearense (2003), O Parnasianismo na poesia brasileira (2004), Alberto de Oliveira (série essencial da Academia Brasileira de Letras, 2010), Breve História da Padaria Espiritual (2011), Relendo Guilherme de Almeida (2012), O Modernismo na Poesia Cearense (2012), Rodolfo Teófilo e a Saga de Jesuíno Brilhante (2013), dentre outros livros de suma importância para os estudos literários regionais e brasileiros.

Como poeta, ganhou notabilidade com as edições de Cantos da longa ausência (1966), Canto efêmero (1986), Cantos da antevéspera (1999) e Lanternas cor de aurora (2006). Seus poemas são musicais, seresteiros, com rimas tocantes e linguagem emotiva. Adepto aos sonetos e aos haicais.

Sânzio de Azevedo é membro da Academia Cearense de Letras e da Academia de Letras do Brasil, com sede em Brasília, Capital Federal. De 1973 a 2008, foi professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Suas páginas são autênticos salmos de amor à sua terra natal. Indaguei sobre o seu alarde de ser cearense, Sânzio de Azevedo ficou em silêncio. Resolvi insistir na pergunta, e ele, convicto, me disse: “Achei que, depois de tanto falar de coisas do meu Ceará, estava implícito o orgulho de ser cearense.”

Esse sentimento de pertencimento, sobremaneira, está exposto em seus trabalhos. Ativo, sensível, culto e de uma lucidez que lhe é peculiar, Sânzio de Azevedo tem experiente faro de brilhante intelectual, consagrado pelos seus sábios gestos de Mestre.



Dos tempos de menino te ficaram
as tardes de sol quente onde os lamentos
dos velhos bois que a morte ruminavam
se esvaíam nas túnicas dos ventos.

Na gleba de teu pai ainda há frutos
das árvores regadas pelos sonhos;
os alpendres, porém, e os altos muros
não deixaram vestígios nem escombros.

Mas tens o verso, com que todo dia
fazes viver um mundo de utopias
com a antiga crença de um profeta hebreu.

E vês que a hora do poema é a hora da lavra
em que ficas à espreita da palavra
que há de queimar como o êxtase de Deus.
  

(Soneto de Sânzio de Azevedo)





(Sânzio de Azevedo, em registro realizado
por Diego Mendes Sousa, em maio de 2019) 




Diego Mendes Sousa - Todos nós aportamos neste mundo com uma ascendência. Em sua genealogia, consta que você é filho do poeta, artista plástico e paisagista, Otacílio de Azevedo (1892- 1978). Conte-me sobre a vida e a obra do seu pai.

Sânzio de Azevedo - Otacílio de Azevedo, meu Pai, foi um homem pobre, nascido em Redenção, CE, em 1892 e falecido em Fortaleza, em 1978. Autodidata, foi poeta e pintor. Publicou cerca de dez livros, mas entrou na Academia Cearense de Letras já velho, em 1969. Depois de sua morte, além de Fortaleza Descalça, de memórias, foi publicada a coletânea de versos Trigo sem Joio.

DMS - Otacílio de Azevedo era também um memorialista! Autor de Fortaleza Descalça, obra póstuma, além de ter escrito um belo soneto dedicado ao poeta José Albano (1882-1923), intitulado Última Página [Como o viajor que em meio do deserto...]. Quais as personagens que conviveram com o seu pai? Otacílio de Azevedo era dez anos mais jovem do que José Albano, eles se conheceram pessoalmente?

SA- Meu Pai conviveu com os poetas Luís e Genuíno de Castro (irmãos), Carlos Gondim, Júlio Maciel, Mário Linhares, Cruz Filho e muitos outros. Conheceu José Albano no Café Riche, aí pelos anos 20. 


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A José Albano


Como o viajor que em meio do deserto
encontra, ao pôr do sol, plácido abrigo,
— repouso, agora, solitário, certo
de que só mágoas dormirão comigo...

Meu coração — tristíssimo jazigo
de mil sombras de angústia hoje referto
fechou das ilusões o áureo postigo
depois que para o amor foi todo aberto!

Preso à teia de aranha da saudade
o que mais me tortura o vão sentido
e de amarguras o meu peito invade

é o remorso cruel de haver mentido:
— pois se do amor cantei mais da metade
metade não cantei do que hei sofrido...

(Soneto de Otacílio de Azevedo) 


DMS - Você nasceu em Fortaleza, em 1938, e muito moço foi morar em São Paulo. Conte-me sobre essa mudança e como ingressou no jornalismo.

SA - Em fins de 1959, resolvi mudar-me para São Paulo, onde vivia meu irmão Rubens de Azevedo, astrônomo. Fui desenhista e, depois, revisor d’O Estado de S. Paulo, durante quatro anos.

DMS - Sua primeira publicação em poesia foi Cantos da Longa Ausência, com apresentação de Guilherme de Almeida, grande poeta e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Fale-me dessa amizade.

SA - Eu fazia no jornal a revisão das crônicas que Guilherme de Almeida publicava sob o título “Eco ao Longo dos Meus Passos”. Por isso, alguns colegas de revisão me levaram ao escritório da rua Barão de Itapetininga. Fiquei indo lá e um dia dei ao poeta os originais de meu livro de poemas. Ele terminou escrevendo a “orelha” do livro, o que me deu enorme prazer. O livro, Cantos da Longa Ausência, saiu em 1966.

DMS - Seu prestígio cresceu no Ceará como estudioso e historiador da literatura. Em 1973, você já era membro da Academia Cearense de Letras (ACL), em respeito, acertadamente, ao seu valioso trabalho sobre a Padaria Espiritual (1892-1898). Esclareça-me sobre esse movimento literário de tamanho impacto para a literatura cearense. Sei que você coleciona relíquias do grupo dos chamados Padeiros.

SA - Entrei na Academia Cearense de Letras em 1973, ano em que ingressei na Universidade Federal do Ceará como professor. Em 1970 publiquei um opúsculo sobre a Padaria Espiritual, mas meu trabalho de mais peso foi minha tese de Doutorado, A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará (2ª ed. 1996), onde penso ter demonstrado que o Simbolismo de Lopes Filho e de Lívio Barreto foi bebido de Antônio Nobre, poeta português, sendo essa escola, no Ceará, independente do que se fazia no Paraná ou no Rio. A Padaria Espiritual, idealizada por Antônio Sales, foi a mais original agremiação cultural (não só literária) do século XIX no Ceará.

DMS - Você tem obstinações ensaísticas, e dentre essas leituras, os seus escritos sobre Adolfo Caminha, Cruz e Sousa, Alberto de Oliveira e Guilherme de Almeida são peças fundamentais. O que esses autores representam para o panorama da literatura brasileira?

SA - Você cita autores sobre os quais escrevi. Sobre o primeiro, publiquei Adolfo Caminha: vida e obra (2ª ed. 1999) e consegui reeditar vários livros dele, inclusive Tentação e No País dos Ianques. Sobre Cruz e Sousa, publiquei em Santa Catarina um opúsculo sobre sua versificação. Sou autor dos Melhores Poemas de Alberto de Oliveira, pela Global de São Paulo, em 2007. Em 2012, Clauder Arcanjo publicou em Mossoró meu livro Relendo Guilherme de Almeida, que anos depois eu lançaria na Casa Guilherme de Almeida, em SP. Penso que são autores que marcaram a literatura do Brasil. 

DMS - Seu livro Joaquim de Sousa: O Byron da Canalha ou o Castro Alves Cearense contém ineditismo e preserva o seu faro de pesquisador. Quem é Joaquim de Sousa?

SA - Esse opúsculo sobre Joaquim de Sousa foi publicado por Dimas Macedo e focaliza um romântico que se suicidou no Rio de Janeiro em 1876, e do qual encontrei vários poemas no jornal Mocidade, que desapareceu da Biblioteca Pública. Dei aulas de Literatura Cearense na Universidade Federal do Ceará (UFC) e sempre os alunos se empolgavam com os versos desse poeta byroniano.

DMS - Pontos elevados do seu pensamento são as obras, Literatura Cearense (1976) e Aspectos da Literatura Cearense (1982), seguidas de inúmeras publicações sobre Parnasianismo, Simbolismo e Modernismo. O Ceará detém uma identidade literária? Como estão entrelaçadas essas expressões regionais com a nacionalidade de muitos autores cearenses, como José de Alencar, Rachel de Queiroz e Gerardo Mello Mourão?

SA - Literatura Cearense, de 1976, contempla nossas letras do Neoclassicismo até o Modernismo e a contemporaneidade. Aspectos da Literatura Cearense, de 1982, enfeixa vários ensaios. Já O Parnasianismo na Poesia Brasileira, de 2004, editado pela UFC e pela UVA, de Sobral, custou-me 30 anos de pesquisa e mereceu um artigo de Wilson Martins. José de Alencar e Rachel de Queiroz estão no livro de 1976. Conheci pessoalmente Gerardo Mello Mourão, mas nunca escrevi sobre ele, não sei dizer por quê.






DMS - Além do livro de estreia Cantos da Longa Ausência, constam em sua bibliografia poética mais três volumes: Canto Efêmero (1986), Cantos da Antevéspera (1999) e Lanternas Cor de Aurora (2006). Qual a sua visão acerca da criação, do seu estilo e dos seus caminhos literários?

SA - Não sou a pessoa indicada para avaliar minha obra poética. Só direi que versos meus estão em mais de dez antologias cearenses e nacionais. Sou um poeta que escreve sonetos e haicais.


SONETO

Há muito tempo, muito tempo mesmo,
sentisse uma tristeza ou uma alegria,
brotavam-me da pena, às tontas, a esmo,
rastros de poema, cacos de poesia...
É claro que nem tudo que me vinha
com maior ou menor facilidade,
ao fim e ao cabo, na verdade tinha
a mesma altura, a mesma qualidade.
Mas escrevia. Hoje, bem mais distante
ficou aquilo que era minha meta.
Somente a inspiração rara e inconstante
é que me diz que ainda sou poeta.
      Já nem sei bem o que daria agora
      para escrever poemas como outrora.

(Soneto inédito, em esquema inglês, de Sânzio de Azevedo)






DMS - Ainda sobre Adolfo Caminha (1867-1897), o seu patrono na Academia Cearense de Letras (ACL), constatei que você enalteceu a obra desse romancista e contista, hoje em voga no cenário nacional, através das reedições de A Normalista e Tentação / No País dos Ianques. Narre-me sobre o legado desse escritor, autor também de um clássico do Naturalismo, intitulado Bom-Crioulo.

SA - Adolfo Caminha, apesar de haver falecido com menos de 30 anos de idade, deixou uma obra que garante seu renome no Naturalismo brasileiro. Só A Normalista e Bom-Crioulo bastam para a consagração do seu nome. Ainda consegui, graças a Italo Gurgel, reeditar suas Cartas Literárias e reunir vários de seus Contos. Apesar de defender o Naturalismo, em Tentação Caminha afasta-se um pouco da ortodoxia da escola de Zola.

DMS - Você é considerado, por seus discípulos, um ícone intelectual do Estado do Ceará. Altair, minha musa, foi sua aluna na Universidade Federal do Ceará (UFC) e retém as melhores impressões. Conte-me sobre a sua atividade acadêmica, bem como sua convivência com importantes escritores, seus colegas de profissão, como Artur Eduardo Benevides, Adriano Espínola e Moreira Campos.

SA - Obrigado pelo “ícone”, mas apenas pesquisei muito durante muitos anos e tentei transmitir aos leitores e alunos alguma coisa do que encontrei principalmente em velhos jornais. Quanto a Artur Eduardo Benevides e Moreira Campos, já falecidos, são, o primeiro, poeta, e o segundo, contista. Grandes nomes das letras cearenses. Quanto a Adriano Espínola, está vivo, graças a Deus, e residindo no Rio de Janeiro. É meu amigo, como os outros o foram.

DMS - Seu Orientador do Doutorado em Letras, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi o crítico literário Afrânio Coutinho (1911-2000), baiano e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Quais as melhores lições aprendidas com o seu tutor acadêmico? Creio que você tenha sido o último orientando dele.

SA - Tive o prazer e a honra de ter sido orientando de Afrânio Coutinho, fundador na nova crítica no Brasil. Aprendi com ele a cada vez mais valorizar a literatura das províncias e a buscar sempre pesquisar as fontes originais, sem confiar muito em transcrições. Era uma figura formidável como professor e como amigo.

DMS - Você não é apenas o poeta, o ensaísta, o biógrafo e o historiador da literatura, mas também o pensador amadurecido, que sabe reconhecer valores. Enquanto seu leitor, quero manifestar a minha profunda admiração pelo bibliófilo. Seu amor aos livros é um lume para mim. Quais as suas mais novas descobertas e o que aguardar da sua pena?

SA - Obrigado pelas palavras generosas. Tenho a publicar (se a pandemia não mandar o contrário) um livro de reminiscências de escritores que conheci no Ceará, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Quase sessenta nomes. Tenho inédito outro, desta vez sobre autores não cearense, como Pedro Nava, Da Costa e Silva, Victor Hugo, Raul de Leoni e Guerra Junqueiro. Além disso, tenho esperança de reeditar minha Breve História da Padaria Espiritual, de 2011.

DMS - Hoje a Academia Cearense de Letras (ACL) conta com um quadro feminino muito expressivo. Acredito que um quarto dos membros da Casa, são mulheres, como Lourdinha Leite Barbosa, Marly Vasconcelos, Beatriz Alcântara, Giselda Medeiros, dentre outros nomes de relevo em Fortaleza. Dou destaque a esse fato interessante, para ilustrar que o Estado do Ceará sempre foi pioneiro e de vanguarda. A propósito, Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL) e a ser distinguida com o Prêmio Camões. Conte-me sobre o seu orgulho de ser filho dos verdes mares bravios.

SA - Faltou citar a atual presidente, Angela Gutiérrez, Noemi Elisa Aderaldo, Regine Limaverde, Révia Herculano, Grecianny Cordeiro e Laéria Fontenele. Nos anos 20, teve a ACL ainda uma mulher, Alba Valdez.

DMS - O seu caminhar literário perpassa pelo Estado do Ceará, a notabilizar expoentes da sua cultura, como na sua obra Rodolfo Teófilo e a Saga de Jesuíno Brilhante (2013). Você sente falta de algum tema que poderia ter sido explorado e não o foi, ou poderá vir a ser ainda?

SA - Gostei de você lembrar meu livro Rodolfo Teófilo e a Saga de Jesuíno Brilhante. Sou autor ainda de O Modernismo na Poesia Cearense, que teve segunda edição em 2012 graças a Raymundo Netto. Sinceramente, não me ocorre nenhum tema que eu pudesse abordar. Penso que, do alto dos meus 82 anos de idade, não tenho mais o que escrever. Agradeço a gentileza desta entrevista com o poeta de Gravidade das Xananas (Editora Penalux, 2019). 



(Clauder Arcanjo, Dimas Macedo,
Diego Mendes Sousa e Sânzio de Azevedo)









ENTREVISTA COM O ESCRITOR SÂNZIO DE AZEVEDO ENTREVISTA COM O ESCRITOR SÂNZIO DE AZEVEDO Reviewed by Natanael Lima Jr on 23:37 Rating: 5

2 comentários

  1. Genial entrevista. Gostei demais! Parabéns!

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  2. Maravilhosa entrevista. Que vida a do poeta, professor e ensaísta, Sânzio de Azevedo, toda dedicada à literatura, ao magistério e a fornecer o pão espiritual, que alimenta e dá força.// Lembrei-me com alegria de que recebi alguns poemas/pães dessa Padaria e que tive a honra de ser recebida na Academia Sul-Mato-Grossense de Letras pelo Prof. Afrânio Coutinho. Abraços fraternos, Raquel Naveira

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