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A QUESTÃO DA IDENTIDADE NA FICÇÃO DE LÍDIA JORGE*



Por Maria de Lourdes Hortas



Nos bastidores da poesia – Reunião de textos 
sobre escritores brasileiros e portugueses




Lídia Jorge, uma das ficcionistas de maior sucesso na literatura portuguesa contemporânea, nasceu em Boliqueime, Algarve, em 1946. Licenciou-se em filologia românica pela Universidade de Lisboa, tendo sido professora do ensino secundário. No exercício do magistério, esteve alguns anos em Angola e Moçambique durante o último período da guerra colonial. De volta a Portugal, tornou-se professora universitária, passando a colaborar em vários jornais e revistas.

Em 1980 dá-se a sua estreia literária com o romance O Dia dos Prodígios, escrito em tempo da virada histórica, após o 25 de abril de 1974, período em que se inaugurava uma nova fase na Literatura Portuguesa, sobretudo na ficção – narrativas quase sempre de denúncia, onde nada é atenuado e onde as chagas ocultas por décadas de fascismo se revelam.

O romance de Lídia Jorge foi recebido com aplausos pela crítica. Jorge Listopad, na revista Colóquio Letras, considerou-o “uma das mais ricas partituras da língua portuguesa”. Para João Gaspar Simões, Lídia Jorge era “o maior prodígio das letras pátrias”, naquele último quartel de século.

Em 1982, com O Cais das Merendas ,LJ confirma o seu talento privilegiado. A propósito do mesmo Maria Lucia Lepecki observa: “...Porque é esta questão de colonização cultural , muito mais do que a da aculturação, a verdadeira ferida que Lidia Jorge lanceta em O Cais das Merendas. Cruel retrato em miniatura de um país que vem tentando vir a ser – e não é de hoje – por interposta pessoa. Por importação de modelos de comportamento ou de pensamento que nada ou muito pouco têm a ver com as suas raízes culturais mais profundas.”

Pouco tempo depois (1988) a autora publica A Costa dos Murmúrios . Sobre este novo romance, João Mancelos escreve: “Profeta no manejo da prosa, (Lídia Jorge) puxa-nos pela gravata do real e arrasta-nos ao hemisfério da ficcionalidade. A Costa dos Murmúrios é pródiga nesta florescência de evocações. Dir-se-ia que um sótão de memórias, ao despegar cores, sons e aromas, cria atmosferas suscetíveis de desenroscar a capacidade que o leitor tem de, segundo Barthes, reescrever o texto”.

A professora Isa Lopes Coelho, da Universidade Federal Fluminense, ainda a  propósito deste romance diz que, nele, a autora “desmistifica o discurso da história oficial e revela a desintegração da identidade nacional portuguesa. Num primeiro momento do romance, o discurso mítico de supremacia do ‘grande império Português’ é reduplicado nas vozes harmônicas ‘da verdade única’ das ‘Evitas’, estas ‘rendilheiras do Stella’, Penélopes à espera dos seus ‘heróis’, que se fazem ouvir no relato de “Os Gafanhotos”. Entretanto, logo depois, testemunhamos a desconstrução deste discurso e a construção de uma verdade vacilante que se equilibra na precariedade dos murmúrios das memórias e nos mantém conscientes da fragilidade destas lembranças enquanto sujeitas a um filtro seletivo e parcial.”

Muitos outros romances se seguiram, bem como livros de contos e uma peça de teatro.

Lídia Jorge vem recebendo vários e valiosos Prêmios, como por exemplo o da Cidade de Lisboa, para Costa dos Murmúrios, e o grande prêmio da Associação Portuguesa de Escritores pelo livro O vento Assobiando nas Gruas ( 2002). Em 2006, foi distinguida na Alemanha com a primeira edição do Albatroz, Prêmio Internacional de Literatura da Fundação Gunter Grass, atribuído pelo conjunto de sua obra. Recentemente o romance Combateremos à Sombra foi galardoado com o grande premio SPA-Millenium.

“O experimentalismo - como observa João Mancelos - é traço dominante na escrita feminina: Virgínia Woolf na prosa e Sylvia Plath na poesia são exemplos disso.” ( O Sexo e a escrita, Letras e Letras, maio/1998).

Lídia Jorge, principalmente nos primeiros livros, deixou-se fascinar pela renovação literária, ousando inovar e incluindo em suas narrativas elementos fantásticos, ressonâncias de alguma literatura sul-americana.

Outra característica da autora, sobretudo em O DIA DOS PRODÍGIOS e O CAIS DAS MERENDAS é a captação da linguagem da oralidade, de mitos e de simbologias arcaicas. Ao longo do tempo, sua obra, de matizes vários e diversidade temática, tem um ponto de coerência, eixo central que gira não só em torno da problemática do povo português depois das circunstâncias históricas já referidas (o 25 de abril), mas da identidade portuguesa propriamente dita.

Acredito que as experiências dos autores são, muitas vezes, o ponto de partida para o objeto literário, quer em prosa, quer em poesia. No caso de Lídia Jorge, a sua experiência fora de Portugal, somada ao fato de ter nascido no Algarve, (região onde se cruzam tantas gentes de todas as partes do mundo) a levaram a desembocar no romance O Cais das Merendas, onde a autora põe à tona as questões que cercam a diáspora, elementos enumerados pelo prof. José Rodrigues de Paiva no seu livro Literatura e Emigração:

“As razões da emigração, a ascensão social do emigrante, o emigrante e suas relações com a estrutura social do acolhimento, o regresso à pátria, a ostentação econômica do emigrante, valores éticos, reinserção (de quem regressa) no meio social originário(…)”.

Em O Cais das Merendas Lídia Jorge constrói personagens que, de volta ao seu país de origem, estão à procura do seu cais, perdidos num universo estranho, onde não conseguem encontrar refugio, desenraizamento que se concretiza não só pela perda das referências culturais, como também pelos secretos e profundos registros afetivos. São retornados e emigrantes, protótipos de patriotas sem pátria, reconstrução dos mesmos seres híbridos a que se referia Ferreira de Castro, no prefácio de seu romance Emigrantes: aqueles que, depois de deixarem o seu país, “continuam a transitar com uma pátria no passaporte, mas, em realidade, sem pátria alguma”.

Por outro lado, aqueles que não partiram, os que ficaram na terra , sentem-se perplexos diante dos que desembarcaram, retornando ou regressando ao seu país para passar férias, todos eles trazendo consigo novas maneiras de dizer e de ser, importadas das plagas para onde se exilaram. Ao apresentá-los, por vezes de forma teatral, e outras até dolorosamente caricatural, a autora parece lamentar os desvios de identidade que ocorrem no processo de aculturação. Veja-se, por exemplo, esta passagem do primeiro capítulo do romance em questão:

“Come on, minha gente. Agora se diz assim, e vejam pelas revistas de todo o mundo a moda que nos chega de boeing pelo ar, apenas com dois dias de diferença, das grandes cidades, como paris, a de um rio que corre às pontes, ou de Londres, com um palácio de relógio certo. Magazines. Com fotografias tiradas junto das costas de outros oceanos, lá onde as rochas, apesar de tudo isso, são adversas, que nelas se despedaçam os barcos…”

E outro trecho, ainda dentro do primeiro capítulo:

“… Era o primeiro party. Pusessem agora os cestos muto direitinhos, que faltava apenas estender as esteiras de assento, bem esticadas, onde a gente se ia sentar a preceito, alongados ao sol.(…) A consciência dos débitos começa pelo uso das palavras. Aconteceu quando se chegou á conclusão de que aquele encontro não poderia continuar a ser merenda. Porque merenda, como se disse, sempre lembraria o tempo das ceifas, por exemplo… lembrava a era do trabalho sem hora, de sol a sol, o calor a dar nas abas do chapéu(…) Cinco horas, vamos à merenda. Então o corpo atirava-se por terra como por cima de colchão de pena fofa, chão duro e restolho espetado, o assento aí posto como tomado, e começava um remordo de figuinho lampo, seco e duro(…) num desprendimento de sabor a grainha, até o por do sol. Antigamente, meus senhores, já nem sabemos quando foi. Era isso a merenda(…).”

Sem o dizer explicitamente, forma apenas sugerida, Lídia Jorge descreve um país que caminha para o limiar do esquecimento de si mesmo – emigrantes e estrangeirados, que, tendo perdido a identidade, a procuram, no desejo de reconstruir um cais, para o mundo das merendas, de um tempo pretérito. No entanto, as personagens de L.J. ao mesmo tempo que buscam as suas raízes, confusamente as renegam e, na tentativa do encontro, muitas vezes se deparam com o desencontro.

Apesar de escrever sobre o seu país, a romancista atinge o universalismo: em qualquer lugar do mundo, todos aqueles que busquem as raízes da sua cultura, podem ver-se refletidos no seu texto, interrogando a memória coletiva.



Escritora Lídia Jorge



(Publicado em ENCONTRO, ano 26 nº21/2010, revista do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco)




*Ensaio extraído do livro “Nos Bastidores da Poesia – Reunião de textos sobre escritores brasileiros e portugueses”, Imagética Edições, Recife, 2019.



Contatos e pedidos:
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Imagética Edições
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A QUESTÃO DA IDENTIDADE NA FICÇÃO DE LÍDIA JORGE* A QUESTÃO DA IDENTIDADE NA FICÇÃO DE LÍDIA JORGE* Reviewed by Natanael Lima Jr on 12:17 Rating: 5

2 comentários

  1. Agradeço ao DCP a divulgação do meu livro.

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  2. Vamos divulgar mais. Aguarde novas novidades, em breve com a nossa "Loja Virtual", dos autores da Imagética Edições.

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