DEZ POEMAS ESSENCIAIS LUSO-BRASILEIROS – PARTE II
Por Natanael Lima Jr.
Arte: DCP
O DCP lançou um desafio a
dois notáveis intelectuais e mestres em literatura portuguesa e brasileira: José Rodrigues de Paiva e Antonio Carlos Secchin, para escolherem
“10 poemas essenciais luso-brasileiros”, sendo cinco poemas de autores portugueses
e cinco brasileiros. Na Parte I do
artigo, os poemas portugueses foram escolhidos por José Rodrigues de Paiva, e
nesta Parte II os escolhidos
por Antonio Carlos Secchin. Boa leitura!
Os escolhidos do escritor, poeta, crítico literário, doutor em Letras e
professor titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Antonio Carlos Secchin foram estes: “Y Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias; “A máquina do mundo”, de Carlos
Drummond de Andrade; “O cão sem plumas”,
de João Cabral; “Poema sujo”, de
Ferreira Gullar; “Táxi”, de Adriano
Espínola.
POEMAS
BRASILEIROS
Y Juca-Pirama
Gonçalves
Dias (1823-1864)
(Trechos)
I
No meio das tabas de
amenos verdores,
Cercadas de troncos —
cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos
d’altiva nação;
São muitos seus
filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra,
que em densas coortes
Assombram das matas a
imensa extensão.
São rudes, severos,
sedentos de glória,
Já prélios incitam,
já cantam vitória,
Já meigos atendem à
voz do cantor:
São todos Timbiras,
guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na
boca das gentes,
Condão de prodígios,
de glória e terror!
As tribos vizinhas,
sem forças, sem brio,
As armas quebrando,
lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram
dos seus maracás:
Medrosos das guerras
que os fortes acendem,
Custosos tributos
ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros
sujeitos na paz.
No centro da taba se
estende um terreiro,
Onde ora se aduna o
concílio guerreiro
Da tribo senhora, das
tribos servis:
Os velhos sentados
praticam d’outrora,
E os moços inquietos,
que a festa enamora,
Derramam-se em torno
d’um índio infeliz.
Quem é? — ninguém
sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: —
de um povo remoto
Descende por certo —
d’um povo gentil;
Assim lá na Grécia ao
escravo insulano
Tornavam distinto do
vil muçulmano
As linhas corretas do
nobre perfil.
Por casos de guerra
caiu prisioneiro
Nas mãos dos
Timbiras: — no extenso terreiro
Assola-se o teto, que
o teve em prisão;
Convidam-se as tribos
dos seus arredores,
Cuidosos se incumbem
do vaso das cores,
Dos vários aprestos
da honrosa função.
Acerva-se a lenha da
vasta fogueira,
Entesa-se a corda de
embira ligeira,
Adorna-se a maça com
penas gentis:
A custo, entre as
vagas do povo da aldeia
Caminha o Timbira,
que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de
vário matiz.
Entanto as mulheres
com leda trigança,
Afeitas ao rito da
bárbara usança,
O índio já querem
cativo acabar:
A coma lhe cortam, os
membros lhe tingem,
Brilhante enduape no
corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte
gentil canitar.
II
Em fundos vasos
d’alvacenta argila
Ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o
prazer começa,
Reina o festim.
O prisioneiro, cuja
morte anseiam,
Sentado está,
O prisioneiro, que
outro sol no ocaso
Jamais verá!
A dura corda, que lhe
enlaça o colo,
Mostra-lhe o fim
Da vida escura, que
será mais breve
Do que o festim!
Contudo os olhos
d’ignóbil pranto
Secos estão;
Mudos os lábios não
descerram queixas
Do coração.
Mas um martírio, que
encobrir não pode,
Em rugas faz
A mentirosa placidez
do rosto
Na fronte audaz!
Que tens, guerreiro?
Que temor te assalta
No passo horrendo?
Honra das tabas que
nascer te viram,
Folga morrendo.
Folga morrendo;
porque além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano
contrastar os medos
Da fria morte.
Rasteira grama,
exposta ao sol, à chuva,
Lá murcha e pende:
Somente ao tronco,
que devassa os ares,
O raio ofende!
Que foi? Tupã mandou
que ele caísse,
Como viveu;
E o caçador que o
avistou prostrado
Esmoreceu!
Que temes, ó
guerreiro? Além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano
contrastar os medos
Da fria morte.
III
Em larga roda de
novéis guerreiros
Ledo caminha o
festival Timbira,
A quem do sacrifício
cabe as honras.
Na fronte o canitar
sacode em ondas,
O enduape na cinta se
embalança,
Na destra mão sopesa
a iverapeme,
Orgulhoso e pujante.
— Ao menor passo
Colar d’alvo marfim,
insígnia d’honra,
Que lhe orna o colo e
o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço
não sabido
Encantadas ali as
almas grandes
Dos vencidos Tapuias,
inda chorem
Serem glória e brasão
d’imigos feros.
“Eis-me aqui, diz ao
índio prisioneiro;
“Pois que fraco, e
sem tribo, e sem família,
“As nossas matas
devassaste ousado,
“Morrerás morte vil
da mão de um forte.”
Vem a terreiro o
mísero contrário;
Do colo à cinta a
muçurana desce:
“Dize-me quem és,
teus feitos canta,
“Ou se mais te apraz,
defende-te.” Começa
O índio, que ao redor
derrama os olhos,
Com triste voz que os
ânimos comove.
A
máquina do mundo
Carlos Drummond de
Andrade (1902-1987)
E
como eu palmilhasse vagamente
uma
estrada de Minas, pedregosa,
e
no fecho da tarde um sino rouco
se
misturasse ao som de meus sapatos
que
era pausado e seco; e aves pairassem
no
céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente
se fossem diluindo
na
escuridão maior, vinda dos montes
e
de meu próprio ser desenganado,
a
máquina do mundo se entreabriu
para
quem de a romper já se esquivava
e
só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se
majestosa e circunspecta,
sem
emitir um som que fosse impuro
nem
um clarão maior que o tolerável
pelas
pupilas gastas na inspeção
contínua
e dolorosa do deserto,
e
pela mente exausta de mentar
toda
uma realidade que transcende
a
própria imagem sua debuxada
no
rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se
em calma pura, e convidando
quantos
sentidos e intuições restavam
a
quem de os ter usado os já perdera
e
nem desejaria recobrá-los,
se
em vão e para sempre repetimos
os
mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os
a todos, em coorte,
a
se aplicarem sobre o pasto inédito
da
natureza mítica das coisas,
assim
me disse, embora voz alguma
ou
sopro ou eco ou simples percussão
atestasse
que alguém, sobre a montanha,
a
outro alguém, noturno e miserável,
em
colóquio se estava dirigindo:
"O
que procuraste em ti ou fora de
teu
ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo
afetando dar-se ou se rendendo,
e
a cada instante mais se retraindo,
olha,
repara, ausculta: essa riqueza
sobrante
a toda pérola, essa ciência
sublime
e formidável, mas hermética,
essa
total explicação da vida,
esse
nexo primeiro e singular,
que
nem concebes mais, pois tão esquivo
se
revelou ante a pesquisa ardente
em
que te consumiste... vê, contempla,
abre
teu peito para agasalhá-lo.”
As
mais soberbas pontes e edifícios,
o
que nas oficinas se elabora,
o
que pensado foi e logo atinge
distância
superior ao pensamento,
os
recursos da terra dominados,
e
as paixões e os impulsos e os tormentos
e
tudo que define o ser terrestre
ou
se prolonga até nos animais
e
chega às plantas para se embeber
no
sono rancoroso dos minérios,
dá
volta ao mundo e torna a se engolfar,
na
estranha ordem geométrica de tudo,
e
o absurdo original e seus enigmas,
suas
verdades altas mais que todos
monumentos
erguidos à verdade:
e
a memória dos deuses, e o solene
sentimento
de morte, que floresce
no
caule da existência mais gloriosa,
tudo
se apresentou nesse relance
e
me chamou para seu reino augusto,
afinal
submetido à vista humana.
Mas,
como eu relutasse em responder
a
tal apelo assim maravilhoso,
pois
a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a
esperança mais mínima — esse anelo
de
ver desvanecida a treva espessa
que
entre os raios do sol inda se filtra;
como
defuntas crenças convocadas
presto
e fremente não se produzissem
a
de novo tingir a neutra face
que
vou pelos caminhos demonstrando,
e
como se outro ser, não mais aquele
habitante
de mim há tantos anos,
passasse
a comandar minha vontade
que,
já de si volúvel, se cerrava
semelhante
a essas flores reticentes
em
si mesmas abertas e fechadas;
como
se um dom tardio já não fora
apetecível,
antes despiciendo,
baixei
os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando
colher a coisa oferta
que
se abria gratuita a meu engenho.
A
treva mais estrita já pousara
sobre
a estrada de Minas, pedregosa,
e
a máquina do mundo, repelida,
se
foi miudamente recompondo,
enquanto
eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de
mãos pensas.
O
cão sem plumas
João Cabral de Melo
Neto (1920-1999)
(Trechos)
I. Paisagem do
Capibaribe
A
cidade é passada pelo rio
como
uma rua
é
passada por um cachorro;
uma
fruta
por
uma espada.
O
rio ora lembrava
a
língua mansa de um cão,
ora
o ventre triste de um cão,
ora
o outro rio
de
aquoso pano sujo
dos
olhos de um cão.
Aquele
rio
era
como um cão sem plumas.
Nada
sabia da chuva azul,
da
fonte cor-de-rosa,
da
água do copo de água,
da
água de cântaro,
dos
peixes de água,
da
brisa na água.
II. Paisagem
do Capibaribe
Entre
a paisagem
o
rio fluía
como
uma espada de líquido espesso.
Como
um cão
humilde
e espesso.
Entre
a paisagem
(fluía)
de
homens plantados na lama;
de
casas de lama
plantadas
em ilhas
coaguladas
na lama;
paisagem
de anfíbios
de
lama e lama.
Como
o rio
aqueles
homens
são
como cães sem plumas
(um
cão sem plumas
é
mais
que
um cão saqueado;
é
mais
que
um cão assassinado.
Um
cão sem plumas
é
quando uma árvore sem voz.
É
quando de um pássaro
suas
raízes no ar.
É
quando a alguma coisa
roem
tão fundo
até
o que não tem).
III. Fábula do
Capibaribe
A
cidade é fecundada
por
aquela espada
que
se derrama,
por
aquela
úmida
gengiva de espada.
No
extremo do rio
o
mar se estendia,
como
camisa ou lençol,
sobre
seus esqueletos
de
areia lavada.
(Como
o rio era um cachorro,
o
mar podia ser uma bandeira
azul
e branca
desdobrada
no
extremo do curso
—
ou do mastro — do rio.
Uma
bandeira
que
tivesse dentes:
que
o mar está sempre
com
seus dentes e seu sabão
roendo
suas praias.
IV. Discurso
do Capibaribe
Aquele
rio
está
na memória
como
um cão vivo
dentro
de uma sala.
Como
um cão vivo
dentro
de um bolso.
Como
um cão vivo
debaixo
dos lençóis,
debaixo
da camisa,
da
pele.
Um
cão, porque vive,
é
agudo.
O
que vive
não
entorpece.
O
que vive fere.
O
homem,
porque
vive,
choca
com o que vive.
Viver
é
ir entre o que vive.
Poema
sujo
Ferreira Gullar
(1930-2016)
(Trechos)
Do
corpo. Mas que é o corpo?
Meu
corpo feito de carne e de osso.
Esse
osso que não vejo, maxilares, costelas
flexível
armação que me sustenta no espaço
que
não me deixa desabar como um saco
vazio
que
guarda as vísceras todas
funcionando
como
retortas e tubos
fazendo
o sangue que faz a carne e o pensamento
e
as palavras
e
as mentiras
e
os carinhos mais doces mais sacanas
mais
sentidos
para
explodir uma galáxia
de
leite
no
centro de tuas coxas no fundo
de
tua noite ávida
cheiros
de umbigo e de vagina
graves
cheiros indecifráveis
como
símbolos
do
corpo
do
teu corpo do meu corpo
corpo
que
pode um sabre rasgar
um
caco de vidro
uma
navalha
meu
corpo cheio de sangue
que
o irriga como a um continente
ou
um jardim
circulando
por meus braços
por
meus dedos
enquanto
discuto caminho
lembro
relembro
meu
sangue feito de gases que aspiro
dos
céus da cidade estrangeira
com
a ajuda dos plátanos
e
que pode - por um descuido - esvair-se por meu
pulso
aberto
Táxi
Adriano Espínola
(1952-)
(Trechos)
Depois
de tirar e enrolar no bolso minha gravata colorida;
depois
do pique, atravessando ruas & portas,
bebendo
a luz da tarde refletida em caras que nunca mais verei;
depois
da ginástica bancária,
dos
trambiques dados,
dos
chopes na esquina;
de
ter avistado as chapinhas de cerveja encravadas no asfalto
e
o poema alucinado e cínico,
inscrito
no corpo crivado de signos & senhas;
depois
disso tudo:
de
ter esquecido o dia,
sentir-me
refeito e repleto, pronto para outra,
-
me vejo aqui parado, esperando,
com
o olhar atento, ansioso,
como
se pela primeira vez,
à
beira da calçada ou à beira de mim,
como
se de repente
não
pudesse perder o que exatamente não sei
nem
saberia...
...TÁXI!
Êiii!...
Aqui!
(Dou
com a mão)
TUDO
COMEÇA SUBITAMENTE ONDE ESTOU
-
Ó Fortaleza, multidão de portas e postes batendo com sua luz
adolescente
no olho da eternidade!
Fortaleza
de 300 mil bocas ardentes como o sol,
famintas
de amor e tragos de farinha.
Fortaleza
de prédios mal-acabados, espetando a noite furiosa e [redonda.
Fortaleza,
avenida de neon, deslizando para todos os desejos.
Fortaleza,
Bezerra de Menezes, seis mãos indo e voltando,
e
uma dor viajando, num só sentido, no banco traseiro de um táxi,
para
onde vamos?
Fortaleza,
solidão escamosa, suor noturno, revelação.
EU
TE PERCORRO
Eu,
fiapo da mente de Deus que um dia avistei,
caminhando,
sim, com o Universo inteiro,
que
era sua própria cabeça iluminada,
pensando
estrelas e galáxias
e
as mais recônditas nebulosas...
-
Quem mais saberia disso?
(Este
Táxi,
a
rua rolando rente,
os
telhados correndo, pensos, de um lado e outro,
a
lata de lixo solitária,
as
árvores caladas,
rostos
e estrelas entrevistos da janela,
teu
corpo passageiro,
tudo
isso à tua frente ou dentro de ti,
que
passa ou permanece no teu olhar-vida,
é
o pensamento infinito de Deus
girando
suas formas no espaço,
borbulhando
mínimo e visível,
invisível
e total,
surgindo
e
desaparecendo,
transformando-se
e ressurgindo
nas
neuras insondáveis do tempo.)
Ó
pensamento rugoso de Deus sobre os muros!
Sílabas
soltas que são papéis pelas calçadas;
palavras,
pés que transitam apressados
ruas,
frases repentinas;
dias
como sentenças cortando /
a
cidade indiferente:
relâmpagos
de sentido cruzando
o
corpo
dentro
da noite
dilacerantes
metáforas
dilaceradas
Balbucios
Orações
entrecortadas
Gagueira
fluente de tudo
-
Ó áspera Linguagem em que viajamos sedentos de tradução!
No
banco traseiro do carro, vamos nós, Moema e eu,
beijando
já seus lábios levemente rachados
pelo
sol da praia.
DEZ POEMAS ESSENCIAIS LUSO-BRASILEIROS – PARTE II
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O ano era 1988. Eu, 24 anos, aluno Bicho-Grilo do Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Aula de Literatura em uma sala da Casa de Cultura Alemã com o Professor Adriano Espínola.
ResponderExcluirAo final da aula, arrisquei uma afirmativa seguida de uma pergunta:
Professor Adriano,faço poesias desde que me entendo por gente. Mas até quando um Poeta consegue escrever versos? Poetas têm validade?
...Adriano deu de ombros e foi saindo...parou à porta de saída,virou-se em minha direção e disse:
"Rapaz, Poeta que é Poeta não tem validade, não. Porém, só os que realmente o são conseguem pôr versos no papel depois dos 30 anos.
Bingo!
Naquela manhã fui arrebatado pela saudável mania de correr à pena toda vez que os fantasmas da inspiração assombram-me a alma, a mente e o coração...
Hoje tenho 55 anos e continuo Poeta!
Ave, Adriano Espínola.
Túlio Monteiro, Fortaleza, Ceará, 10 de maio de 2020.