SOBRE DOIS “EUS”
30 de
setembro de 2018 by Frederico Spencer
Imag.
Reprodução
Em literatura, o campo das “verdades” está nas mãos do
jornalismo, das ciências, das bulas dos remédios, dos manuais técnicos e das
religiões. A linguagem neste cenário obedece a um padrão: deve ser rígida e
concreta, visando o conteúdo único e estático da realidade, para ser facilmente
consumida tornando-se desta forma, um instrumento eficaz para a prática dos
discursos ideológicos.
A literatura dos romances, novelas, contos e poesia,
diferentemente, deve ser antes de tudo um jogo de sedução. Sua linguagem é
carregada de significados e de sentidos, desta forma constitui-se num convite
para uma viagem sem roteiros preestabelecidos, onde os passageiros desta nave
aportarão no cais de sua preferência - no recôndito de suas almas. Esta viagem
trará inquietações que deverão abrir novas fronteiras no pensamento do leitor.
Para tanto, a linguagem ficcional deve libertar-se do
coloquialismo da palavra usual, campo das ideias do sentido único, para
transformar-se em ferramenta de libertação do espírito, impulsionando a
potencialização dos aspectos humanos.
Neste sentido o signo deverá se transmutar fugindo da
lógica do cotidiano. Seu interior deverá ser carregado das imagens oriundas das
memórias do escritor e grafado sobre a ótica das figuras de linguagem –
principalmente - transformando-se desta maneira, num novo produto textual, rico
em conteúdo imagético, capaz de transportar o leitor para dentro da estória.
Este não é um trabalho fácil para aquele que pretende
escrever - transportar para o papel aquilo que traz em seu pensamento, rico em
conteúdo representacional - para se tornar algo palatável ao gosto da escrita.
Atento a este fato o poeta e crítico literário César Leal afirmou: “Ao usar a
palavra para expressar a imagem que traz no seu espírito, o poeta livra-se do
espacial e pode revelar os estados de sua alma, suas paixões, todos os
movimentos do seu espírito”.
Neste sentido, a arte é a linguagem da experiência e ela
não está dentro do objeto, apenas permite que vejamos diretamente o que está em
nosso interior, o nosso conteúdo. Ela é somente um espelho que revela nossas
marcas, nossa história.
Assim é “A METADE
DO QUE EU ERA”, do escritor pernambucano Edgar Mendes Nunes. Um livro acima de tudo - de reminiscências -
contadas em dois gêneros: conto e novela, técnica esta que expõe corajosamente
o autor levando-o ao seu clímax na arte de contar histórias, oriundas das
profundezas de sua memória.
Estes foram os meios encontrados pelo autor para
mergulhar naquilo “do que era e do que
é”. Momentos estes que se enroscam na estrada dura de barro, no sol do
sertão, na sombra materna do pé de fícus e nos banhos de rio, misturados com a
vida urbana dos dias atuais, enredada de maneira leve, harmoniosa e que prende
a atenção do leitor do começo ao fim.
O autor também se embrenha nestes dois caminhos: do conto
e da novela, penso eu, como forma de mediação das contradições do seu “estar no mundo”, contradições estas,
próprias dos seres pensantes que buscam respostas num mundo contraditório. Este
é um livro de jogo de espelhos, típico de quem senta num sofá para expor suas
verdades. Neste instante busca a fonte freudiana: serve-se dos lapsos e da
memória – a dualidade do ser, para apaziguar as dores do inconsciente.
Neste livro, aquele que se apresenta nem sempre é aquele
que fala, pensa e sofre com suas dores mais profundas. Narrador e personagens
se entrepõem numa mística textual disfarçada pelas memórias de um tempo que
resiste e pulsa, mesmo mesclado com os acontecimentos mais recentes de um
cotidiano que insiste em sobreviver além do seu passado. Espaço e tempo se
interpõem buscando uma dialética inevitável para o encontro do homem consigo
mesmo.
Aqui há um jogo de cena que busca nos colocar frente a
frente com nossas vidas, portanto, com nossas memórias, boas ou ruins, sempre
de mãos dadas com o autor.
*Frederico Spencer é sociólogo, poeta, contista e editor do DCP
SOBRE DOIS “EUS”
Reviewed by Natanael Lima Jr
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