ORAÇÕES PARA VAGALUMES – PARTE 2 (CONTO DE FERNANDO FARIAS)
Uma nova experiência que o site Domingo com Poesia
traz pra você. Nosso colaborador Fernando Farias escreveu um conto que será
apresentado em três partes. A cada semana um trecho do interessante ORAÇÕES
PARA VAGALUMES. Realismo fantástico puro.
Não deixe de compartilhar e comentar aqui. Boa leitura.
ORAÇÕES PARA VAGALUMES – Parte 2
Fernando
Farias
Img.: reprodução
Assim comecei a ajudar os doentes e a
limpar mundo de gente ruim. Percebi que,
quando eu rezava, via que as pessoas boas têm uma nuvenzinha azul na cabeça. Só
eu as via. As más pessoas tinham uma
nuvem marrom. Eu não curava pessoas ruins. Às vezes nem gente ruim não nascida.
Eu via as nuvens marrons nas barrigas das grávidas.
Minha tia Benildes voltou do mundo dos
mortos. Toda a noite vinha em meus sonhos, sempre arrastando os pés e a
reclamar de minhas orações negativas. Para ela meu segredo era para ajudar as
pessoas e não para matar.
Eu acendia velas para minha tia e
fazia aumentar no cemitério as catacumbas pintadas de azul.
Anos depois a cidade não tinha mais
gente doente. Os médicos não trabalhavam. As casas funerárias fecharam. Eu via
uma nuvem azul sobre as ruas. Ninguém mais me procurava. Eu não via mais
vagalumes, ninguém para enviar velas. Meu rabo de jacaré voltou a crescer.
Naquela noite, sonhei que voava com os
pássaros para o Sul. Um deles com a voz de tia Benildes me avisou que estava na
hora de ir para cidade grande.
Eu tinha juntado dinheiro das doações
e numa mala com poucas roupas, umas fotos da família e o vidro de perfume de
gardênia. Saí cedinho, no ônibus amarelo, sem me despedir. Cheguei à rodoviária
com cheiro de tangerina e vômito. Uma cidade escurecida pela fumaça.
Perguntei onde tinha um lugar para
ficar. Ensinaram-me que perto do porto havia pequenos hotéis que alugavam
quartos para moças vindas do interior.
Vi um navio pela primeira vez.
Constatei que havia muita safadeza na cidade, marinheiros bêbados e música
alta. A cidade grande cheirava a esgoto.
Os quartos das moças ficavam nos
corredores de madeira. Nem eu
consegui dormir. Assustei-me com os gritos que pareciam de pessoas sendo
enforcadas, gemendo e chutavam as divisórias de madeira. Depois riam e
brigavam.
Eu precisava curar para diminuir meu
rabo. Contei a um grupo de moças seminuas que eu rezava pessoas doentes. A
notícia se espalhou. Deram para me chamar de a “cigana”.
As doenças aqui são diferentes do
interior. Sofre-se de sífilis, cranco duro e saudades de casa. Os homens só
falam línguas estranhas, como dizia o pastor.
Comecei a rezar. Sem cobrar nada para
ganhar confiança e mostrar serviço. As doenças desapareciam e minha fama
aumentou. Principalmente entre os marinheiros estrangeiros.
Passava dia orando, passando a folha
de arruda nos pênis caídos, pingando pus, diante de homens desesperados e
vagalumes.
Tempos depois descobri que a cidade
era um imenso puteiro. Só agora descobri que eu morava numa bucetaria. Não
havia moças direitas como lá no interior.
Até que um dia a polícia fechou o
hotel e fui presa. Fiquei numa cela com mulheres estranhas que se diziam
condenadas pelo crime de pensar diferente do governador. Uma delas, a Mariana,
escondia a foto de um homem barbudo, fardado e fumando um charuto. O homem era
“El Comandante”, segundo ela.
No outro dia, Mariana voltou para a
cela, estava em carne viva. Eles tinham arrancado seus mamilos com alicates.
Rezei com a força de quem acredita na reza para curar as feridas. Ela se levantou
sem dores, transparente, riu para mim, flutuou e atravessou o teto. Ficou
apenas o resto de Mariana no chão cercada de sangue.
Não me levaram para tortura, bateram
na cabeça até que eu fiz sexo oral com três deles e mandaram me soltar.
Disseram que eu era feia. A polícia nem me revistou.
Era noite e eu estava do lado da
cidade longe do porto. Ruas largas, cheia de carros e gente apressada.
Precisava dormir para falar com minha tia. Apenas a mala e o pouco dinheiro.
Ainda tentei dois hotéis, mas não me deixaram ficar, eu tinha cara de mulher
suspeita. Esperei anoitecer e dormi num banco da rodoviária certa que voltaria
para o interior.
Tia Benildes disse que não. Indicou-me
procurar a diretora do hospital, uma religiosa, e pedir ajuda para trabalhar.
Tia Benildes disse que eu devia fazer rezas para curar os doentes antes que o
rabo crescesse. Creio que, no sonho, vi
a Mariana a lado de minha tia.
Foi fácil para eu ser aceita no
Hospital da Caridade Cristã, só pela comida e uma maca enferrujada para dormir.
Um prédio antigo, escuro, cheirando a urina, cheio de imagens de santos, onde
as freiras administravam com desprezo. Nos jardins criavam plantas carnívoras
alimentadas com restos de feridas dos doentes.
A velha madre escutou meu pedido sem tirar os olhos dos meus seios e da
minha boca. Concordou em me dá aposentos em troca de meu trabalho.
A cara fechada da freira se abriu em
gargalhadas quando contei que eu era rezadeira e que curava as pessoas doentes
com minhas orações. Logo virei a rezadeira doidinha entre as freiras risonhas.
Não acreditavam em orações.
Mas fiz o que minha tia mandou.
Silenciosamente comecei a rezar. Minha tarefa era varrer e lavar o chão das
enfermarias, entre os cancerosos, tuberculosos e amputados das usinas de cana.
As salas se enchiam de vagalumes e eu
não via nuvens escuras na cabeça das pessoas. Mas havia nuvens marrons nas
cabeças das freiras.
CONTINUA
NA PRÓXIMA SEMANA
ORAÇÕES PARA VAGALUMES – PARTE 2 (CONTO DE FERNANDO FARIAS)
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
07:00
Rating:
esperando a continuação... Adorei a história! No começo me pareceu uma história infantil mas quando começou a usar palavras adultas entendi a proposta...
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