O ESTELIONATO DA LITERATURA
por
Alexandre Coslei*
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Todos
os índices do mercado editorial encolheram com exceção da modalidade digital. A
venda de livros, por exemplo, despencou acima dos 5%. O número de leitores
também diminuiu, de acordo com o atual censo da Fipe (Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas). Justificam-se os dados decadentes pelo aperto nas vendas
para o governo. No entanto, prefiro acreditar nos muitos paranoicos que reverberam
sobre as estratégias equivocadas das editoras e da própria configuração
corporativa do nosso ambiente literário. É a teoria da conspiração.
A
literatura no Brasil sempre brotou de feudos, um hábito desenhado desde o
século 19 e institucionalizado com a criação da Academia Brasileira de Letras.
Não imagino como o velho Machado reagiria se pudesse ver no que a ABL se
transformou – se cairia em prantos ou sorriria satisfeito. Quando lemos a
magnífica biografia escrita por Luís Viana Filho (A vida de Machado de Assis,
ed. José Olympio) e olhamos para a correspondência trocada entre o bruxo do
Cosme Velho e outros tantos escritores (neófitos e consagrados), nos salta aos
olhos o intenso carinho solidário e a humildade visceral que transborda das
cartas. Havia um amor pulsante pela arte literária que fugia à vulgaridade do glamour
pessoal. Os antigos eram simpáticos às novidades, fomentavam talentos nascentes
e abraçavam os que se arriscavam nas letras. Ao mesmo tempo em que existiam as
panelas, destacava-se a vontade de incluir. O amor à arte superava o amor
próprio.
Com
o tempo, os valores se inverteram. Em nossos dias, a extrema mercantilização da
palavra descaracterizou o objetivo estético e social da arte; a persona
sobrepõe-se ao trabalho. O escritor foi caracterizado como vendedor e vende-se
o vendedor antes de se vender a obra. Um artifício muito semelhante ao usado
por estelionatários, que vendem a própria imagem antes de venderem um conteúdo
que não existe e que caracteriza o golpe.
Hoje,
há um círculo, um country club, onde só penetram jornalistas, atores de
grandes redes de TV, intelectuais de Ipanema e figuras com algum tipo de status
social que desperte a admiração das massas. A elitização da fama. A obra como
coadjuvante do autor e a veneração pública como fator comercial nos dão
espelhos em troca do nosso ouro. O hiato da colonização e de algumas ditaduras
nos fez carentes de referências, nos inoculou o vício de idolatrarmos ídolos de
barro.
Camadas
profundas
Por
outro lado, a política das editoras contemporâneas, que aos poucos vão se
entregando a um sistema que beira o monopólio, não discrimina gêneros
literários, mas promove uma pasteurização dos estilos. É uma tática sutilíssima
e perniciosa a serviço do lucro. As silenciosas exigências para a publicação
abriram espaço para um novo profissional, o coach para escritores: ele
ensina fórmulas e molda o autor para que seja aceito mais facilmente por alguma
casa editorial.
Com
uma caneta, um caderno e uma ideia podemos fazer literatura? Não. Podemos escrever
sobre linhas incertas, mas a literatura (que pressupõe leitores) se tornou um
ofício que exige infraestrutura promovida por quantias indigestas de dinheiro.
Por conta dessa personalização da arte literária, o escritor só é escritor se
estiver apoiado num bom marketing pessoal, talvez com assessoria de imprensa,
que o conduza às poucas mídias que divulgam o livro. Não há mais romantismo na
escrita; o poeta sem dinheiro e suporte editorial não enxerga nem a Lua.
No
cenário de castas do nosso universo literário, ficam visíveis somente aqueles
que encontram a oportunidade de se acomodarem sob os dispendiosos holofotes
midiáticos. O resto é resto, uma legião de figurantes que orbita o vácuo. Sim,
existem as trincheiras, pequenas editoras que se empenham na resistência, que
publicam a periferia e arrebatam prêmios para os anônimos. Nomes que surgem
como vitoriosos nessa guerrilha, raras exceções que, além de editoras, poderiam
ser consideradas entidades filantrópicas. Infelizmente, qualquer exceção está
longe de alterar o rumo da realidade cultural da literatura brasileira.
No
meio desse imbróglio de vaidades, os promotores de eventos choramingam quando
perdem a verba governamental para realizarem jornadas e festivais de
literatura. Minha ignorância pragmática não cessa de me perguntar: o que é
preciso para um encontro literário, além de um caixote para dispor os livros e
uma tenda de lona para nos proteger das intempéries? Um pouco de boa vontade e
espírito franciscano valem muito mais do que o financiamento estatal, o que nos
leva a crer que esses subsídios públicos acabam servindo para promover os
próprios promoters.
O
capital que rege o sistema de publicação de livros no Brasil vem se revelando
um tiro pela culatra, restringem as preferências, adestram os leitores,
depreciam a qualidade dos textos e o resultado do lucro rápido reflui na ameaça
do prejuízo. Lemos o que querem que leiamos, mas a natureza nos ensina que o
reflexo reluzente boiando à luz do sol na superfície das águas é somente o
dejeto que não afunda. A vida brota nas camadas mais profundas, onde a
inteligência desenvolve luz própria e evolui porque insiste.
*Alexandre Coslei é
escritor, crítico literário, jornalista, agregando formação em Letras pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colaborador do DCP
O ESTELIONATO DA LITERATURA
Reviewed by Natanael Lima Jr
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07:03
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Lendo o texto de Alexandre Cosley, O ESTELIONATO DA LITERATURA, para o Domingo com Poesia.
ResponderExcluirTexto espetacular! Para os que amam juntar letras, que o façam por amor. Vamos enxergar a lua, sim. Apesar de tudo. O amor verdadeiro pela escrita, nunca será vendido, muito menos comprado, antes, é uma doação da alma, depois, uma troca. Não sei se devemos nos conformar só em doar amor... É preciso conquistar o grande príncipe, o livro, mas é indispensável que o mundo conheça a história de amor do criador pela criatura... Contradição? Não. Constatação.
Lígia Beltrão