FRAGMENTOS DO DIÁRIO DIAGONAL DE VALDIR OLIVEIRA

Capa: Divulgação

FRAGMENTO 1
O que conto a partir de agora não é fato que ocorra ou tenha ocorrido com algum estranho ao meu convívio. Mas trata-se de uma pessoa estranha nos gestos e atitudes, assim percebida por alguém que a considera fundamental no processo de compreensão do sentimento humano.  Falo de mim mesmo na perspectiva de uma dualidade: eu e Dario, esse ser solúvel, que tenho que conduzir ao longo da minha vida e que às vezes me decepciona, mas também me surpreende. Em alguns momentos é torpe, noutros é uma fonte de pureza, de bondade, de luta, e, acima de tudo, de contradições e anseios.

FRAGMENTO 2
Dario, essa pessoa de quem falo é um ser de carne e osso e eu, apenas a voz silenciosa do personagem que me tem como par e, em algumas circunstâncias, cúmplice de seus atos. Ainda que, por vezes, a minha verdade fosse ou seja dizer não, como não me cabe julgar a dicotomia do meu ser, então apenas escrevo este texto, a partir do meu diário, em um relato que me parece imparcial. Parece.

FRAGMENTO 3
Eu não tenho resposta para qualquer questionamento sobre meus desejos. Aliás, não se trata de desejo. Necessito da proteção de uma bolha, de um vácuo entre mim e qualquer homem ou mulher que habite este planeta. Cheguei ao limite. Já não suporto a ilusão, ela imbeciliza o ser. Não tenho resposta para o sorriso que camufla o veneno dos incautos. Não tenho palavras para responder aos que apenas provocam com suas indagações.  Não tenho mais suor ou sangue para derramar pelos acomodados. Cada um vá à luta. Eu fui, mas agora preciso descansar trabalhando apenas com a perspectiva da ausência no mundo das multidões e trilhando um caminho sem acostamentos. Eu vou por esta trilha que talvez me conduza a um assento sólido ou, quem sabe, a um vácuo infinito.

FRAGMENTO 4
- Já não existe qualquer dúvida. Sou um homem apaixonado.
- O que em mim te apaixona?
- Os teus sentimentos.
- Será por estarem impregnados de paixão?
- Vejo que me copiam. Percebe que nossos sentimentos duelam para descobrir em qual de nós é mais intenso?
- Disputa desnecessária, Dario. Meus sentimentos são mais abundantes. Por ti eu disponho a própria vida.
         - Também a minha vida é menor do que o que sinto por ti, Berenice.
         - Removes desconfianças e assim me comoves.
- Então posso tocá-la ainda mais?
- Sim, toca-me. Posso ser o teu violino ou teu flautim. Como quiseres, toca em mim.
- Em ti farei sinfonia.

FRAGMENTO 5
         - Sempre que olho seus olhos me vejo pelo avesso.
         - Mas como assim? No começo dizia que eu era bela!
         - A mesma beleza impera tal qual a flor, frente e verso. Vejo-me pelo avesso porque me descubro outro. Impregnado de desejo, tomado pela astúcia e tão misterioso, tal qual aquela pergunta pra qual não se tem resposta: quem veio primeiro, a galinha ou o ovo?
         - Também me vejo assim, completamente você. Se perguntares por mim numa hora como essa, se há limites entre nós dois, confesso, amor, resposta não saberei encontrar, porque quando amamos ficamos tão diluídos, tal qual a cópula fluida do rio chegando ao mar.
         - Então por que conversamos gastando nossas palavras?
         - Palavras como bem sabes, são formas bem alinhadas de aumentar o prazer.
         - Sei, e não sei por que te pergunto. Mas é também o silêncio que nos permite avançar e, neste amor oceano, desejo mais me adentrar.
- Calemos um pouco agora para ouvir o silêncio.
- Escuto neste silêncio meu fôlego acelerando, e igualmente percebo que respiras com veemência.
- O que percebo é que não tenho de santa nenhuma cota sequer. Assim, como estou agora, me sinto toda mulher, me sinto a mais amada, arrebatada, tragada, como açúcar em café.
- Vamos então nos calar, eu peço tal qual você. Me beije como te beijo, deixemos nosso desejo nos suplantar de prazer.

FRAGMENTO 6
Os soldados voltaram em fila, trincheira armada para debelar sentimentos e sonhos. Tropeços, quedas, rasteiras. Na esteira de asfalto havia gente sangrando, havia sangria planejada e os jovens, adultos e idosos, com o semblante alvejado, olhavam pros lados, avessos a pedidos de clemência. Humilhar-se seria curvar-se às pretensões do algoz.
- Nos matarás com prazer?
- Seremos apenas lei. E a Lei que impera é a do silêncio. A fala é uma sentença assinada por quem se expressa.
As palavras do soldado não surtiam efeito de recuo. Nenhum dos homens se esquivou do avanço. A marcha foi adiante e os coturnos no rastro. No fim daquela revolta, eu, Dario, sobrevivi.

FRAGMENTO 7
Caminhos e diferenças, indiferenças também, são tantas as controversas e os tecidos que engilham! Nem sempre o ferro tem o ponto do quente para desmanchar as vigas e as intrigas. E os tecidos, amarrotados, vão cada vez mais desfigurando, perdendo a cor como foto exposta ao tempo inclemente. Tal qual se faz com objetos, também ocorre com gente. Berenice, bela, faceira, a primeira que seria única, talvez até fosse mesmo se o mesmo fosse eterno. Eu também curvei-me às tentações do prazer. Refiz a vida por vezes, mas diante de outro olhar não consegui suportar e projetei-me no vácuo, no vão, em vão.
- Dario, você me ama?
- Amar eu sempre amei.
- E ama, além da cama?
- Amor incondicional.
- Seria o ideal se sério para mim falasses.
- Mas sempre falo a verdade.
- Mentes mais uma vez.
- O que está se passando? Explique que não entendo.
- Está passando o tempo, você virado, eu sofrendo. Não sei como teve a astúcia de se tornar homem vil. Por todos os anos juntos devia ter me procurado, conversado e assim definiríamos um rumo.
- Até tentei resistir, mas fui tragado eu sei.
- Então confessas, Dario, que foste aos braços de outra.
- Pensei que só uma vez, mas tudo foi muito intenso...
- Crápula, covarde, ignorou minha entrega com tanta força, tanta paixão. Dizia que lhe bastava a chama que incendiava nosso ato, o nosso gozo. Poderia ter sido claro, aberto, sincero se não mais me amava.
- Mas eu a amo ainda.
- Mas eu não.
- Não me amas? E todas as juras que fizeste?
- Eu fiz em tempos passados. Se buscastes o teu consolo em outro lado, então também te confesso, eu fiz o mesmo Dario. E hoje sei plenamente que no começo era amor o que eu sentia por ti, depois virou uma farsa, fumaça, impalpável, inconsistente. Melhor assim, vai aos braços de tua nova amada e eu serei a estrada de um novo caminhante.
- Berenice, não vá, eu a amo, amor.
- Vou, Dario. Não quero viver na dor.
        
FRAGMENTO 8
Parecia uma passeata como outra qualquer. Os coturnos andavam nas ruas, os rifles se emparelhavam, os tanques conduziam a guerra, o povo se dispersava. Mas a dispersão estava contida em pretensão mais profunda, feito maré que inunda a área circunvizinha. Por mais que se dispersassem, os rebeldes se reagrupavam e resistiam aos disparos. Eu vi atônito quando Diógenes, mais uma vez, foi acuado e posto de joelhos diante de armas, como um ser sem valor.

FRAGMENTO 9
- Dario, meu filho, está chegando o meu fim, mas vejo como coisa natural. Quando chegar o seu, também perceba assim. A dor diminui.
- Mas a senhora tem a grandeza de ser mãe. Eu não tenho esse dom de acreditar que tudo é tão perene.
- Você é cabeça dura, e isso não é de agora. Por mais que alguém lhe diga você entende ao contrário. Entenda, Dario, os ratos não roubam queijo se os gatos estão vigiando. A ponte é necessária para transpor o obstáculo. A reta encurta o caminho. A morte aponta um norte.
- Qual é o norte da morte? Pra qual estrada ela aponta?
- Aponta pra outra vida que seja menos sofrida. É isso o que espero neste momento em que se aproxima a partida.
- Eu a admiro cada vez mais, minha mãe. Mas eu não sou a senhora. Naquilo que acredito não falam as escrituras. Talvez a minha história seja apenas sinopse.
- Mas tanta coisa já fez! Até se apaixonou! Sua vida rende um romance.

FRAGMENTO 10
Quando converso, dialogo comigo mesmo, locutor e interlocutor. A voz que fala é a do meu pensamento, a que responde é a da minha memória. A que fala, provoca, a que ouve, invoca soluções mínimas e tenta fazer do incerto uma prática. Convicção plena de que a linha tênue é o gume de uma navalha na qual a vida busca seu equilíbrio.
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