O Conto da Semana
Lembrança
de Augusta (conto) de Fernando Spencer*
(Homenagem
à minha mãe e à Rua Augusta em que nasci, no bairro de São José, num janeiro de
um ano qualquer)
Foto:
Arquivo DCP/Fernando Spencer
Caminha na madrugada fria e sonolenta.
Choveu há pouco. No asfalto, a marca. De longe, os reflexos dos luminosos no
chão.
Seu caminhar é lento, como as ideias
que emergem neste trottoir invernal. Busca nesses passos lentos, o reencontro
que até hoje não ocorreu.
Faz tanto tempo que desejava revê-la.
Gostaria de invadir suas entranhas e
aninhar-se outra vez, como da primeira, no seu útero, num certo janeiro.
Queria sentir o cheiro bom, como
agora, neste sopro que vem, mas não sabe de onde.
Os passos são lentos, como um
cavaleiro medieval furando o tempo com sua lança.
Aqui e ali, um boêmio, ébrio comum,
tentando equilibrar-se, tocando nas paredes frias.
Do outro lado, um casal que ainda não
se desfez do encontro, depois de gozar na noite, desejos e promessas de ontem.
Numa esquina, um botequim que vai
fechar as portas.
Nélson Gonçalves no ar!
O homem dobra a primeira rua. Já está
fora da comprida Avenida do General. Se alguém perguntasse o que procurava na
madrugada, diria apenas:
- Vou ver Augusta. Quero
reencontrar-me com o ontem nesta noite de agora.
Quero acordá-la de sua paz com o meu
grito, como antigamente, da varanda, nos seus braços maternais.
Gostaria que neste momento ela ouvisse
o primeiro choro, como naquela tarde de um verão-janeiro que vai bem longe. O
choro que libertaria as dolorosas agonias do nascer-menino.
Entra em outra rua, mas só o leva à
grande Avenida do General Dantas Barreto.
Está perdido ou perdeu Augusta?
Tenta gritar. Mas Augusta nada
responde. Tudo é silêncio.
- Augusta! Augusta!
Baixinho, lá dentro soa ao seu ouvido:
Augusta? Ela morreu faz muito tempo. A
cidade cresceu e sufocou Augusta. O General renasceu e Lucena sepultou Augusta.
*Fernando
Spencer
é cineasta e foi por 40 anos editor de cinema e música do Diario de Pernambuco.
Foi diretor da Cinemateca da Fundação Joaquim Nabuco, escreveu poemas e contos
para vários jornais do país e foi premiado nacionalmente e internacionalmente.
É patrimônio vivo da cultura de Pernambuco.
O Conto da Semana
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
08:51
Rating:
Excelente conto do grande Fernando Spencer. O tempo não para e a vida não para...
ResponderExcluirPerfeito!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirMuito bom
"O novo sempre vem, mas fica velho também" e assim a vida continua. Viva Fernando, viva Augusta e viva o Recife.
ResponderExcluir